Antonio Magalhães*
O sociólogo e escritor Gilberto Freyre (1900-1987), autor do célebre Casa Grande e Senzala, abriu a lista de “cancelados” ainda no século passado. Foi uma vítima da temporada de caça aos intelectuais inteligentes e independentes, como ele. Com obras marcantes dos anos 1930 até sua morte, as “panelinhas” das universidades brasileiras, principalmente da USP, se negaram a estudá-las. As referências principais vieram de colleges estrangeiros e da Universidade de Columbia (EUA). Freyre foi condenado por seus pares ao silêncio, mas nunca aceitou o cancelamento, nem deixou ser enquadrado dentro de ideologias.
Ele manteve-se ativo intelectualmente e só o Diário de Pernambuco lhe deu espaço para comentários. Freyre ainda teve tempo de criar o mais importante instituto de pesquisa social do Nordeste, hoje Fundação Joaquim Nabuco, deixando os “canceladores” babando de inveja.
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Esta é uma história que as novas gerações precisam conhecer. O mundo “woke”, do pensamento único da esquerda, que boicota pessoas tidas como politicamente indesejáveis, como se viu acima, não traz novidades: é mais uma prática que deve ser combatida numa sociedade verdadeiramente democrática e, há décadas, prospera espalhando o ódio e a censura.
Diante da injustiça contra Gilberto Freyre, outro pernambucano ilustre, o dramaturgo, escritor e jornalista Nélson Rodrigues (1912-1980), saiu em sua defesa, na sua coluna de O Globo, do Rio. Numa das crônicas, nos anos 1960, incluída no livro O Reacionário, ele registra que o que se fazia com Gilberto Freyre na época era “sem nenhum disfarce, uma vileza inverossímil”.
Nélson Rodrigues, observador crítico da intelectualidade da época, apontou no jornal as consequências do boicote a Freyre: “a vida intelectual do Brasil parou. Ninguém faz nada. Os romancistas não fazem romance, os poetas não inventam uma metáfora, os dramaturgos não criam um personagem. Se aparecer um Dante, um Shakespeare, um Proust, ou sei lá, ninguém vai saber, porque não temos uma consciência crítica”.
Para Nélson, “só há um sujeito, que é um grande artista, cuja potência criadora não tem outra igual no Brasil: Gilberto Freyre. Não precisaria acrescentar uma linha a mais na sua obra excepcionalíssima. E por quê?”
Responde o dramaturgo: “Porque os intelectuais exigem dos intelectuais atestado de ideologia. Ou o artista é comunista, socialista, esquerdista, inocente útil, ou que outro nome tenha, e terá toda cobertura promocional. Mas se for um solitário, independente, um original, não terá uma linha em jornal nenhum. Dirão vocês que a inteligência de esquerda não manda nada. De acordo. Não tem poder, mas o exerce. As redações estão infiltradas. E assim as rádios. E assim a televisão”.
Como a militância de redações de hoje, Nélson relata o que acontecia na época com Freyre: “Qualquer notícia do grande autor de Casa Grande e Senzala vai para a cesta. Leiam os nossos jornais, as nossas revistas. Querem assassiná-lo pelo silêncio”.
Nesta crônica em O Globo (02.07.1969), Nélson relata o encontro com uma jovem estudante de Psicologia da PUC-Rio, um dos grandes centros de formação de militantes de esquerda, que lhe propôs assinar um manifesto de intelectuais. Na noite anterior, no mesmo bar Antonino, a jovem lhe disse que tinha horror de intelectuais. “Sim, mudei de opinião”, conta a estudante zangada ao escritor. “Sempre achei Gilberto Freyre um fascista. E continuou: ninguém deve dar colher de chá a Gilberto Freyre. Ao reacionário, nem água”, esbravejou a estudante. “E olha aqui – completou a moça – você, Nélson, é outro reacionário”.
Nélson Rodrigues assegura, na crônica, que só assinaria um manifesto que dissesse mais ou menos assim: “Nós, intelectuais abaixo-assinados, queremos denunciar um crime contra a inteligência na pessoa do sociólogo Gilberto Freyre, um dos maiores artistas da nossa língua. E o pior: nós, os intelectuais, é que levantamos um muro de silêncio entre Gilberto Freyre e o Brasil. E os que são amigos da grande vítima, emudecem por covardia. Orai por nossa indignidade” etc. etc. etc.
As repetições ou continuidade de práticas de cancelamentos e boicotes são indignas de uma nação que quer ser democrática e podem levar à morte representantes de campo político adversário, como o influencer americano Charlie Kirk. A atividade do gabinete do amor, que só destila ódio, é uma homenagem aos totalitários do momento, resumida numa frase pertinente do guru da esquerda global Karl Marx: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. No caso do Brasil, vem sendo uma repetição sem fim de cancelamentos e perseguições. Farsas trágicas. É isso.
*Jornalista
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