Por Toni Reis *
Vocês, mulheres, devem voltar para a cozinha?
Eliane Cantanhêde, admiro você desde que a conheci, na Folha de S.Paulo, na Globo, na GloboNews, no Estado de S. Paulo… Você é uma excelente jornalista, bem-informada, extremamente assertiva nos comentários, além de ter ótimas fontes. Vi você várias vezes nos corredores do Congresso Nacional.
Leia maisMas, na semana passada, você externou algo que permeia o senso comum. Você falou que a Janja não está seguindo a cultura, o protocolo, a liturgia do cargo de primeira-dama (conferir aqui, no relato do Uol).
Bem, a Janja é uma militante afiliada ao Partido dos Trabalhadores desde 1983, socióloga, uma pessoa que tem luz própria, uma capacidade de organização fantástica, uma habilidade no trato com a cultura. É uma lutadora pela igualdade entre homens e mulheres. É uma mulher ‘babadeira’. Adotou a Resistência, a cachorrinha de rua que frequentou a vigília em frente à sede da Polícia Federal em Curitiba enquanto o Presidente Lula estava preso.
Eu queria me apresentar. Sou Toni Reis, sou gay, professor, especialista em sexualidade humana, mestre em Filosofia (estudei ética e sexualidade), doutor em Educação e tenho dois pós-doutorados em educação e diversidade de gênero. Sou ativista e militante pelos direitos humanos de pessoas LGBTI+ desde os anos 1980. Reproduzindo esse discurso. Precisamos agir para promover a igualdade entre mulheres e homens.
Voltando à Janja. Pelo que li, pelo que conheço, pelo que os outros falam, a Janja não é uma mulher de cama e mesa, e ela não vai ficar cuidando só da área social ou cumprindo protocolos. Como companheira, amante, que compartilha afetos com o presidente Lula, este, como todo ser apaixonado, quer tê-la o mais perto possível o tempo todo. Afinal, Lula já sofreu tanto. Foi preso, lutou, saiu do segundo mandato com 87% de popularidade. Merece o carinho, a confiança, a admiração da pessoa pela qual está apaixonado.
Janja tem que estar onde ela quiser. Isso se chama autonomia e livre arbítrio.
Aproveitando, temos que refletir se esse posto de primeira-dama deveria ou não ser extinto, até porque os tempos mudam. Vide o caso do Rio Grande do Sul: o marido do governador eleito será primeiro-“damo”, primeiro-cavalheiro? Os tempos mudam, a cultura muda e a linguagem também. Atualizar-se, “aggiornar”-se é um dever de todos, porque Eliane Cantanhêde, ficar aferroada a protocolos que oprimem e deixam infeliz não é de bom tom.
Como diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos (que inclusive foi protagonizada por uma primeira-dama, Eleanor Roosevelt, em 1948), todos nós nascemos livres e iguais em dignidade e direitos. A nossa Constituição Federal corrobora isso quando diz que todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Já pensou, Eliane Cantanhêde, você fazendo o mesmo comentário sobre a atuação da Eleanor Roosevelt na CNN ou na Fox News?
Que viva a Janja e seu protagonismo! Que se mantenha vivo o protagonismo de Anita Garibaldi, Chica da Silva, Chiquinha Gonzaga, Maria Quitéria, Dandara, Nísia Floresta, Tarsila do Amaral, Enedina Marques, entre outras que não se curvaram ao senso comum quanto ao papel da mulher na sociedade. Obrigado a vocês por tornar nosso Brasil menos misógino, menos patriarcal, menos machista.
Nesse sentido, nós LGBTI+ não voltaremos para o armário, negros e negras não voltarão para a senzala, e as mulheres não voltarão para a cozinha e/ou alcovas, embora às vezes cozinha seja bom e alcova seja ótimo depois de uma sobremesa! Não são padres e pastores fundamentalistas, machos alfas ou quaisquer pessoas que vão dizer a nós como devemos nos comportar, nos silenciar, nos invisibilizar.
Como disse Simone de Beauvoir (1908-1986), “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres” (Rosa Luxemburgo, 1871-1919).
*Professor, formado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), é especialista em sexualidade, mestre em Filosofia e doutor em Educação. É Diretor-Presidente da Aliança Nacional LGBTI.
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