Do Correio Braziliense
O mundo encerrou 2024 com um marco histórico negativo: o número de autocracias superou o de democracias pela primeira vez desde o início dos anos 1990. Segundo o Democracy Report 2025, elaborado pelo instituto Varieties of Democracy (V-Dem), ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, 91 países vivem hoje sob regimes autoritários, enquanto apenas 88 mantêm sistemas democráticos. O dado inverte a tendência predominante desde o fim da Guerra Fria, quando a expansão democrática era considerada irreversível.
A pesquisa, que avalia 32 indicadores de qualidade institucional, mostra que 71% da população mundial — o equivalente a 5,7 bilhões de pessoas — está submetida a governos autocráticos, enquanto apenas 29% vivem em democracias. Em 2013, essa proporção era inversa: mais da metade da humanidade (52%) vivia sob regimes democráticos. O índice global de democracia liberal caiu de 0,54 para 0,43 na última década, em uma escala que vai de 0 (menos democrático) a 1 (mais democrático).
Leia maisO relatório diferencia entre autocracias eleitorais — onde há eleições regulares, mas com liberdade de imprensa reduzida, controle sobre instituições independentes e restrições à oposição — e fechadas, caracterizadas pela ausência de disputa política significativa. As primeiras representam hoje 60% de todos os regimes autoritários, incluindo países como Hungria, Índia, Turquia e El Salvador. Já as segundas, como Coreia do Norte, Arábia Saudita e Eritreia (África), mantêm estruturas de poder concentradas e ausência total de competição eleitoral.
Em termos regionais, América Latina e Caribe registraram retrocessos acentuados, com o relatório classificando Nicarágua, Venezuela, El Salvador e Guatemala como autocracias eleitorais. A Ásia concentra o maior número absoluto de regimes autoritários, puxada por China e Índia, enquanto a Europa viu retrocessos em democracias consolidadas, como Polônia e Hungria. No ranking de erosão democrática, 42 países apresentaram declínio estatisticamente significativo apenas na última década.
O V-Dem alerta que o fenômeno é impulsionado por um padrão comum: a erosão gradual das instituições a partir de dentro, conduzida por líderes eleitos que utilizam mecanismos legais para concentrar poder, restringir liberdades e enfraquecer contrapesos. Diferentemente de golpes militares, esse processo é mais lento, mais difícil de reverter e, muitas vezes, conta com apoio popular.
Outro ponto crítico é que, segundo o estudo, liberdades fundamentais como a de expressão e de associação estão em queda em mais de dois terços dos países, um índice pior do que o registrado na década de 1970, quando as ditaduras militares ainda predominavam em várias partes do mundo. Para os autores do relatório, o cenário indica que “o autoritarismo não é mais exceção, mas uma forma de governo cada vez mais normalizada”.
Riscos e mecanismo
Para o cientista político Rodrigo Stumpf Gonzalez, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o padrão mais recorrente hoje é a “autocratização por dentro”, em que líderes eleitos chegam ao poder legitimados pelo voto, mas gradualmente alteram leis, normas e práticas para concentrar poder e reduzir a capacidade de contestação. “Não há tanques nas ruas, nem fechamento imediato do parlamento. O que ocorre é um enfraquecimento paulatino de órgãos de controle, uma captura das cortes, restrições à liberdade de imprensa e perseguição a opositores. Tudo dentro de uma narrativa de que se está protegendo a democracia”, afirma.
O sociólogo e cientista político José Maurício Domingues, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), acrescenta que o modelo político atual é democrático na forma, mas restritivo no conteúdo, o que gera frustração e descrença. Segundo ele, a incapacidade das democracias liberais de responder a demandas sociais e econômicas cria um vazio político que abre espaço para forças que prometem “respostas simples — e muitas vezes autoritárias — para problemas complexos”. Ele relaciona esse cenário à ascensão do neoliberalismo, que esvaziou a capacidade de governos de implementar mudanças estruturais.
A professora de ciência política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Silvana Krause chama a atenção para a internacionalização da extrema direita, que construiu redes transnacionais de influência, financiamento e troca de estratégias. Para ela, o uso de conceitos como “liberdade” e “direitos” para deslegitimar instituições e questionar processos eleitorais faz parte de uma disputa semântica que confunde a opinião pública. “A arquitetura digital potencializa esse processo”, explica, destacando que redes sociais e ferramentas de automação criam circuitos de reforço que radicalizam identidades e polarizam o debate.
Silvana ressalta que a arquitetura digital potencializa o processo. Redes sociais e ferramentas de automação e inteligência artificial ampliam alcance, segmentam públicos e criam circuitos de reforço que transformam crenças em certezas, radicalizando identidades e polarizando o debate público. Para Krause, não se trata apenas de tecnologia: é uma estratégia política que combina comunicação dirigida, performances de confronto contra “inimigos internos” e a permanente erosão de confiança nas instâncias de mediação democrática (imprensa, partidos, justiça eleitoral).
Leonardo Paz Neves, analista de inteligência qualitativa no Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional (NPII) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), observa que há um padrão incremental na degradação democrática, com mudanças legais e administrativas que, somadas, reconfiguram o sistema. Ele cita “censura indireta, restrições à sociedade civil e regras eleitorais calibradas para quem está no poder”, sempre sob aparência de legalidade. Segundo ele, isso retarda a reação social e torna a reversão mais difícil.
Ele afirmou que há um declínio factual na qualidade das democracias e a polarização, agravada com o uso exagerado das redes sociais e da inteligência artificial (IA), contribuem para o declínio. “Os principais índices convergem: há menos democracias do que no passado recente e as existentes perderam qualidade. Liberdades civis e direitos políticos vêm sendo comprimidos em diversos países, e o traço mais visível é a polarização agravada por redes sociais e ferramentas de inteligência artificial, que convertem adversários em inimigos e desorganizam normas básicas de competição política”, exemplifica.
Como reverter
Gonzalez defende que a resistência a esse tipo de erosão democrática exige fortalecer instituições de controle e criar mecanismos que dificultem a captura das cortes e a manipulação de regras eleitorais. Para ele, a sociedade civil precisa se manter vigilante e reagir a mudanças graduais que limitem liberdades.
Já Domingues considera essencial reconstituir um projeto político que vá além de políticas compensatórias e incorpore a população de forma efetiva à vida econômica, social e cultural. “As pessoas não querem apenas políticas compensatórias; querem direitos, dignidade e oportunidade de viver plenamente. Se essa agenda não avançar, a extrema direita continuará explorando o descontentamento popular para minar a democracia”, afirma.
Silvana Krause aponta que a educação política é um ponto crucial para que a população consiga diferenciar críticas legítimas de ataques para enfraquecer instituições. Embora não seja a única solução, ela afirma que a alfabetização cívica é fundamental para blindar parte da sociedade contra narrativas autoritárias.
Para o cientista político Paz Neves, não basta realizar eleições para restaurar padrões democráticos. “É preciso garantir igualdade de condições, instituições independentes que funcionem e ambiente informacional minimamente íntegro. Sem isso, vitórias eleitorais deixam de significar alternância real.” Ele lembra que quanto mais a erosão avança, mais difícil é revertê-la, e cita exemplos como Hungria e El Salvador, onde reformas estruturais foram usadas para limitar o pluralismo e o controle judicial.
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