Além de espirituoso e chegado a tiradas sarcásticas, para se livrar de ocasiões inoportunas, Miguel Arraes tinha uma coleção de histórias que adorava contá-las, principalmente quando estava na estrada enfrentando longas distâncias ou no avião, para quebrar o estado de tensão e ansiedade.
Ex-chefe de gabinete da secretaria de Imprensa, o jornalista Italo Rocha se especializou em decifrar o que o ex-governador dizia, porque poucos entendiam a sua péssima dicção e sua mania de falar baixo. Arraes tinha uma porção de histórias do arco da velha. E divertidas, como divertida era a figura dele.
Leia maisSegundo Italo, certa vez o jornalista e romancista Antônio Callado pegou a estrada rumo ao Sertão na companhia de Arraes. O ano era 86, marcado pelo simbolismo da eleição da volta do velho cacique ao poder, depois de 14 anos exilado na Argélia.
Callado se mostrou interessado em conhecer a relação de Arraes com o seu povo simples do Sertão e a agenda incluía um comício. Durante a viagem, Arraes tentou matar o tempo e divertir o convidado. Foi quando contou uma história de Lampião, personagem que admirava. O caso envolvia um coronel político do Sertão.
Entre uma baforada e outra num charuto cubano, Arraes contou que o coronel, a pedido de Lampião, fez um pacto com o chefe do cangaço e topou escondê-lo na sua fazenda. Em troca, teria toda a proteção do rei do cangaço e do seu bando. Numa dessas paradas na fazenda, Lampião precisou se ausentar e, segundo a versão que Arraes sabia, não poderia levar Maria Bonita.
Confiando cegamente no coronel, pediu para Maria Bonita ficar sob os seus cuidados. E partiu sem dizer para onde ia nem quando voltaria com 20 cangaceiros. Naquele casarão imenso, ficaram apenas o coronel, seus serviçais e Maria Bonita. O dono da casa começou a ficar nervoso porque, nem bem Lampião tinha passado a porteira da fazenda, a sua companheira começou a pedir ao coronel para dar um passeio no Ford Bigode que ele tinha acabado de comprar.
Arraes contava a história rindo, chamando atenção de Calado para uma possível traição de Maria Bonita, que, segundo ele, não parava de se insinuar para o rico fazendeiro. A mulher de Lampião, na ocasião, arranjava qualquer desculpa para chegar perto do coronel e reiterar o pedido do passeio.
E isso só fazia aumentar o medo e também a angústia do coronel. “Afinal, contou Arraes, Lampião não disse para onde ia e deixou bem claro que podia voltar a qualquer momento”. Foi no meio desse tormento, segundo Arraes, que o coronel teve uma ideia para fugir de Maria Bonita e da sua própria fazenda.
Simulou um ataque do coração e gritou por ajuda. Os empregados e o motorista da fazenda vieram socorrer o patrão, levado ao Recife no Ford Bigode. O coronel era conhecido por sua valentia e sua coragem de mamar em onça, mas ter um caso com a mulher de Lampião ultrapassava os limites do seu destemor.
Diante da risada de Antônio Callado, Arraes olhou em direção ao ilustre convidado e perguntou: “E aí, amigo, se coloque no lugar do coronel. O que você faria?”.
E gargalhou!
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