Por Marcelo Tognozzi
Do Poder360
Debruçado no Mediterrâneo, no Cap d’Antibes, Riviera francesa, está o Hotel Du Cap, um dos mais luxuosos do sul da França, símbolo de glamour e sofisticação. A região de Antibes era a preferida do escritor britânico e Prêmio Nobel Somerset Maugham (1874-1965), um bon vivant frequentador assíduo da região e que morreu ali ao lado, em Nice. Naquele final de agosto de 1990, pleno verão europeu, o embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima curtia merecidas férias, quando um garçom veio até ele com um telefone sem fio pousado numa bandeja de prata: “Chamada para o senhor, urgente”.
Ele era embaixador do Brasil em Londres e do outro lado da linha estava o diplomata brasileiro encarregado de negócios em Bagdá, pedindo sua ajuda junto ao governo de Saddam Hussein, para liberar brasileiros retidos no Iraque. Paulo Tarso contou essa história em entrevista concedida a mim em janeiro de 2021 para o portal Poder360.
Leia maisNa sequência, ele falou com o seu colega Marcos Azambuja, então secretário-geral do Itamaraty. Os dois mestres da diplomacia diante de um caso espinhoso: 450 brasileiros estavam retidos, chamados de hóspedes pelo governo de Saddam Hussein, atolado na Guerra do Golfo depois de invadir o Kuwait. Enfrentava uma coalizão de 30 países liderada pelos Estados Unidos.
Paulo Tarso seguiu para Bagdá via Amã, na Jordânia, porque não havia outra rota segura. O embaixador levava uma carta do então presidente Collor ao ditador iraquiano, guardada para ser usada no caso de necessidade. A missão foi um teste para a diplomacia brasileira daqueles tempos, exemplo de profissionalismo, neutralidade e foco nos interesses do país.
A mesma diplomacia capaz de, em plena ditadura militar, fazer do Brasil o primeiro a reconhecer a independência de Angola levada a cabo pelo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), comandado por comunistas apoiados pelos cubanos. Tudo por obra e graça do chanceler Azeredo da Silveira. Foi ele também quem negociou o acordo nuclear com a Alemanha e o estabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China. Silveirinha, ministro do governo militar, não praticava diplomacia ideológica, mas pragmática.
Foi a ausência desta verdadeira diplomacia o combustível da crise com os EUA. Imperou o improviso. Desde que tomou posse em janeiro deste ano, Trump fez chegar à Brasília um recado: trataria o Brasil como uma questão pessoal. Portanto, a crise anunciada seria mera questão de tempo, algo para estar no radar da nossa diplomacia, especialmente nestes tempos conturbados, regidos pelo imponderável.
Trump e Lula não se gostam, falam mal um do outro abertamente. O fato de o demônio laranjinha cometer este tipo de erro, não libera nosso guia para repeti-lo. Trump anunciou um pacote de tarifas sem que ninguém tenha se dado ao trabalho de procurar a Casa Branca em busca de negociação que favorece o Brasil. Lula chama Trump de nazista e Trump chama Lula de ladrão. É muita baixaria.
Quando as tarifas foram anunciadas por Trump naquela carta fatídica, virou um Deus nos acuda. Senadores foram para os Estados Unidos sem agenda, sem assessoria internacional, no improviso total. Não conseguiram falar com ninguém importante, o Congresso em recesso de verão. O senador Jacques Wagner, líder do governo no Senado e ex-governador da Bahia, foi pedir ajuda ao ex-presidente Bush. Ignorou que Bush e Trump são inimigos e que a filha dele fez campanha para a democrata Kamala Harris. Tinham de ir direto ao vice-presidente J.D. Vance, que preside o Senado. Voltaram para casa com a lição: sem diplomacia é difícil.
O Brasil resolveu esticar a corda e bater palma para maluco dançar, enquanto os demais países apostaram na diplomacia profissional. A Índia, informa o repórter Assis Moreira do Valor, bloqueia nos Brics a renovação da Estratégia para Parceria Econômica para o período 2025-2030. Quer esfriar a fervura. Narendra Modi, informam fontes da diplomacia indiana, disse para Trump que foi de Lula a ideia de romper a hegemonia do dólar como moeda internacional. Serguei Lavrov, chanceler russo, também contou a mesma história. Até os chineses, principal alvo da guerra tarifária de Trump, resolveram conversar ao invés de estressar.
Por que russos e indianos tiraram o corpo fora da desdolarização? Por que o governo de esquerda da Inglaterra negociou? E a Europa? Terá sido Ursula von der Leyen, chefe da União Europeia, seduzida por Trump, ou todos os europeus são frouxos, entreguistas das suas soberanias? Por que será que eles usam a diplomacia e o Brasil não? Porque a ordem no Itamaraty é fazer corpo mole. Perdemos a iniciativa diplomática. Apertem os cintos, a diplomacia sumiu.
Quem aposta numa derrota de Trump nas eleições de meio de mandato pode ir colocando as barbas de molho. Claro que num tempo em que o imponderável comanda a orquestra tudo pode acontecer, mas a última pesquisa publicada pelo respeitado “Wall Street Journal” em 25 de julho, mostra os democratas enfrentando a pior rejeição dos últimos 35 anos. Só 8% dos eleitores são muito favoráveis aos Democratas enquanto 19% apoiam os Republicanos, uma diferença de 11 pontos percentuais.
O mesmo “Wall Street Journal” publicou outra pesquisa em 28 de julho, na qual 62% dos eleitores apoiam a política do atual governo de deportação de imigrantes ilegais. Para quem anda sonhando com impeachment de Trump, melhor não brigar com a realidade. Ele não tem tido vida fácil por causa da inflação, mas também não está no inferno.
O poder de retaliação dos norte-americanos é imenso. Hoje, o Brasil tem uma crescente parceria com a Rússia. Pois os senadores brasileiros descobriram o que muita gente já sabia: o Congresso está prestes a votar uma lei criando sanções para os parceiros comerciais dos russos, considerados financiadores indiretos da guerra contra a Ucrânia.
Os russos vendem 60% do diesel importado pelo Brasil. Compramos da Rússia uma enormidade de fertilizantes para as nossas supersafras: 40% do potássio e 20% da ureia. São US$ 3,7 bilhões. Importamos da Rússia, Marrocos, Canadá e China 85% dos fertilizantes que consumimos. O agro é movido a diesel e fertilizantes. Sem diesel, tratores e colheitadeiras param.
Importamos diesel e fertilizantes, porque os governos petistas decidiram não investir em ampliação do refino e nem permitir refinarias privadas. O resultado é que exportamos petróleo e importamos gasolina e diesel. Os governos Temer e Bolsonaro fecharam as fábricas de fertilizantes da Petrobras sem que outras fossem colocadas no lugar.
Num eventual boicote aos russos, sem estes insumos faltará comida para exportar e para abastecer a mesa dos brasileiros. Não se produz carne bovina, porco e frango sem milho e soja. É uma ilusão achar que tudo vai ficar bem porque os produtores venderão para o mercado interno.
O Brasil é uma potência agrícola que não pode explorar suas minas de fertilizantes, porque as ONGs, os ambientalistas e os defensores dos povos originários não permitem. É assim que se financia o discurso da sustentabilidade e da Amazônia intocada.
O governo Lula trata a crise com os EUA como um ativo político, quando na realidade tirou o urso para dançar. Celso Amorim é um senhor de 82 anos. Envelheceu sem ficar sábio, age como um menino de 20 anos em pleno diretório estudantil da universidade pública, deslumbrado com o Psol. Quebrou o Itamaraty, jogou toda nossa inteligência diplomática de dois séculos no lixo. Não vamos chegar a lugar algum com este senhor comandando a política externa.
A soberania nacional não será defendida com narrativas, esticando a corda, apostando no quanto pior melhor. Soberania é atitude, é inteligência e pragmatismo. A conta desta diatribe chegará. E bem cara.
Paulo Tarso enxergava longe. Nas suas mãos o setor de comércio exterior do Itamaraty deu um salto. Conseguiu viabilizar exportações de veículos e de serviços, como o de empreiteiras para a construção de infraestrutura no Oriente Médio.
Foi por isso que recorreram a ele quando o tempo fechou e os 450 brasileiros ficaram retidos no Iraque. Chegou a Bagdá com dona Lúcia e mais dois ou três assessores. Negociou com todo seu talento e inteligência. Não sossegou enquanto não tirou todos de lá sem um arranhão.
Partiu para o aeroporto de Bagdá num Mercedes-Benz da embaixada. Quando o carro arrancou, o diplomata René Loncan apertou o play e a trilha sonora inundou o carro no coro dos hebreus da ópera Nabuco de Verdi. Hino à liberdade, à escapada, também hino da vitória da determinação, eficiência e competência da era de ouro da nossa diplomacia. Paulo Tarso é um dos símbolos de uma época em que, como observou Somerset Maughan, “se você se recusa a aceitar qualquer coisa que não seja o melhor, frequentemente acaba conseguindo.”.
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