Por Osório Borba Neto
Há equívocos que não merecem o benefício da dúvida. E há comparações que não nascem de confusão, mas de má-fé — ou de algo pior: da tentativa deliberada de reescrever a história com tinta de ressentimento e revisionismo.
O artigo do senhor Antonio Magalhães, que tem a ousadia de equiparar Dom Hélder Câmara a Eduardo Bolsonaro, ultrapassa os limites do erro factual ou da simples incongruência lógica. Estamos diante de uma operação ideológica, que não hesita em subverter categorias morais e históricas para justificar o injustificável: a atuação política de um parlamentar que, por palavras e gestos, reiterou sua hostilidade às instituições democráticas e sua admiração por regimes autoritários.
Leia maisA tentativa de colocar Dom Hélder e Eduardo Bolsonaro sob o mesmo signo da “luta pela democracia” é, além de um desrespeito à inteligência alheia, um atentado à memória coletiva de um povo que ainda busca cicatrizar as feridas de uma ditadura militar que o oprimiu por duas décadas.
Dom Hélder não buscou apoio internacional para proteger a si mesmo ou a aliados políticos, mas para denunciar as torturas, os desaparecimentos e os assassinatos cometidos em nome da “ordem”. Ele o fez não para subverter a República, mas para restaurá-la. Era um bispo sem armas, sem cargos públicos, sem aparato de Estado, que enfrentava a censura, o isolamento e a ameaça física com a autoridade moral que somente os justos possuem. Foi perseguido não por conspirar contra a democracia, mas por defendê-la em seu momento mais frágil, quando o silêncio era regra e o medo, método.
Eduardo Bolsonaro, ao contrário, representa uma linhagem política que nunca escondeu sua simpatia por regimes de exceção. Ao buscar apoio estrangeiro, não o faz como dissidente ou perseguido político, mas como filho de um ex-presidente cuja tentativa de subverter o resultado das eleições por meios golpistas está sob investigação no próprio Supremo Tribunal Federal. Equipará-lo a Dom Hélder é mais do que grotesco: é um insulto à própria ideia de resistência democrática.
O que o artigo de Magalhães revela, em sua lógica torcida, é o triunfo da banalização — o mesmo fenômeno que Hannah Arendt denunciou ao analisar a capacidade dos regimes totalitários de dissolver as fronteiras entre o bem e o mal, entre o herói e o cúmplice. Quando todos são comparáveis, ninguém é responsável; quando todas as lutas são vistas como equivalentes, nenhuma é legítima.
A história de Dom Hélder não admite apropriações cínicas. Ele foi um dos mais luminosos símbolos da Teologia da Libertação, defensor radical dos pobres e crítico incansável da desigualdade social como forma de violência estrutural. Ao ser silenciado pela ditadura, não se calou. Ao ser vigiado, não se escondeu. Ao ser ameaçado, não temeu. E, justamente por isso, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz e reverenciado por estadistas, intelectuais e movimentos populares do mundo inteiro.
Há, sim, uma herança política que liga Dom Hélder ao nosso tempo: a herança da dignidade. Mas esta não se transmite por sobrenomes, nem por laços de sangue, tampouco por mandatos parlamentares. Ela se conquista na luta desigual contra o autoritarismo, na defesa intransigente da vida e na recusa ética de se render ao medo.
O Brasil atravessa um momento difícil — mas o que nos ameaça não é um “conluio togado” nem um “jornalismo exilado” em podcasts ressentidos. O que nos ameaça é justamente o tipo de retórica que transforma golpistas em mártires, falsifica analogias e confunde denúncia de injustiça com tentativa de obstrução da Justiça.
Dom Hélder Câmara não foi um “ativista de esquerda” nem um “padre turbulento”. Foi, como disse Pedro Casaldáliga, um dos poucos santos que a Igreja teve em vida. Reduzi-lo a um personagem instrumental em disputas menores é mais do que injusto. É imperdoável.
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