Sertanejo de alma cristalina, coração bondoso, apaixonado pelas coisas simples da vida no Sertão, meu pai Gastão Cerquinha morreu aos 100 anos e sete meses. Até os 90, viveu como um jovem. Tinha horror à velhice. Se vestia impecavelmente, roupa de linho, sapatos engraxados. Vaidoso, tomava banhos de perfume francês.
Adotou uma prática toda própria para se conservar um velho jovem. Tenho a impressão que foi ele que descobriu o elixir da eterna juventude. Aos contestadores do seu modo de ser e encarar a vida, torcia o nariz.
Leia maisAdorava uma música de Roupa Nova, “Sapato velho”, que, no fundo, tinha a mensagem do velho revestido do novo: “É, talvez eu seja simplesmente/Como um sapato velho/Mas ainda sirvo se você quiser/Basta você me calçar/Que eu aqueço o frio dos seus pés”.
A juventude só deixa boas recordações se a gente envelhecer, mas meu pai tinha juventude infinita de felicidade, sorrisos largos, gigantescas e memoráveis gargalhadas. Parece que se inspirava em Mahatma Gandhi: “A felicidade não está em viver, mas em saber viver”. O legado do meu pai nos remete a concluir que não vive mais o que mais vive, mas o que melhor vive.
Só com o tempo pude compreender meu pai. Sei hoje, por vê-lo tanto repetir, que viver é uma arte de tanta dificuldade que muita gente morre sem a ter compreendido. É preciso saber que o esplendor da manhã não se abre com faca, mas com os olhos e o coração em êxtase.
Acho que meu pai também inspirou os Titãs, sem nunca ter curtido as suas músicas: “Quem espera que a vida seja feita de ilusão/pode até ficar maluco ou morrer na solidão/ é preciso ter cuidado pra mais tarde não sofrer/ é preciso saber viver”. Papai viveu vislumbrando o que tinha pela frente, agarrando o que tinha ao lado e deixando passar o que havia ficado para trás.
Papai era um sábio. O homem sábio é belo mesmo quando ninguém o vê.
O homem sábio é aquele que não se entristece com as coisas que não tem, mas rejubila com as que tem. Ele lia Aristóteles: “O homem sábio não busca o prazer, mas a libertação das preocupações e sofrimentos. Ser feliz é ser autossuficiente”.
Além de ser um eterno jovem e sábio, meu pai também queria ser eterno. Que não falasse da morte diante dele. Parece que seguia Confúcio: “Para quê preocuparmo-nos com a morte? A vida tem tantos problemas que temos de resolver primeiro”.
Devorador das crônicas de Rubem Alves, um dia enfrentei meu pai e na tentativa de persuadi-lo sobre a única certeza da vida, que é a morte, li para ele esta frase de Rubem Alves: “A morte e a vida não são contrárias, são irmãs. A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir.”
Ele olhou para mim e com o nariz enviesado, bradou: “Vamos viver! A vida é bela”.
Nunca mais falei em morte diante do meu mais precioso tesouro da vida.
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