Da esquerda para a direita: Manoel, esposo de Joça, Ana Regina, minha irmã, Joça e Fátima, também minha irmã
Há pessoas que se tornam tão especiais em nossas vidas que nem a distância nem a poeira do tempo são capazes de afastá-las de dentro da gente ou apagá-las da nossa memória. A cabocla Jocelina, ou Joça, espécie de irmã de criação da minha mãe Margarida, se constituiu num personagem muito marcante para meus irmãos e eu, entre as fases de criança e adolescência em Afogados da Ingazeira.
Baixinha, menos de um metro e meio de altura, rosto largo, desdentada, óculos de fundo de garrafa, usava uns saiões coloridos. Só mais tarde, soube que as cores fortes da sua vestimenta tinham relação com a matriz da religião africana, da qual era adepta.
Leia maisCerta vez, Denise, minha irmã caçula, foi arrastada por ela, com apenas cinco anos, para conhecer a performance dela num ritual no qual profetizava sua crença. Católica fervorosa, mamãe deu uns esculachos nela e na filha. Joça nunca mais traiu, no campo religioso, a confiança de Dó, como tratava minha mãe.
Joça sonhava com uma família grande, como Mamãe, que teve nove filhos saudáveis. Mas, mesmo sendo fértil como Valentina Vassilyeva, a mulher que mais pariu no mundo – 69 filhos – só conseguiu vencer uma única vez a sua batalha contra a infame diarreia, doença que no século passado dizimou milhares de bebês nos grotões do semiárido.
Foi batizado de Antônio, o Toinho, como o tratávamos, o único herdeiro dela que escapou das garras da morte por doenças crônicas. Outro herdeiro, mas adotado, foi Zezinho, mais velho que Toinho. Convivi com ele. Mal abria a boca de tão tímido. Tenho impressão que nem mamãe sabia ao certo as contas dos filhos de Joça abatidos antes dos três meses, não sei ao certo se pela fome ou diarreia.
Como dói ainda em mim, passados tantos anos, relembrar os choros incontidos dela, na cabeceira da mesa de refeições de nossa família, pela perda precoce de tantas crias. Joça era, igualmente, uma diversão. Papai Gastão gostava de provocá-la.
Dizia que o nariz dela parecia mais com uma tomada elétrica. Na ponta da língua, desaforada, respondia: “Sai pra lá, seu venta de Águia.” Joça casou com Manoel, um pinguço, literalmente. Quando gari, pedia um trocado pra tomar uma jurubeba. “Dá, meu nego, um trocadinho, se não vou gripar”, apelava, dando gargalhadas.
Joça matava as galinhas caipiras dos nossos almoços de fim de semana com habilidade invejável. E até os perus de fim de ano. Certo dia, mandou Manoel – o verbo mandar era comum na sua prática diária com o marido – levar uma galinha na casa do meu irmão Tarso. Quando bateu na porta, Tarso perguntou: “Quem é?” Na bucha, respondeu: “A galinha”.
Até hoje, meus irmãos recordam esse episódio morrendo de rir. Quando a gente perguntava a ele se ia morrer, respondia assim, sem a menor cerimônia: “Se Deus quiser, quando eu for vivo”. Não era hilário? Manoel morreu antes de Joça. Não resistiu aos efeitos da doença de Chagas, transmitida por um besouro comum em casas de taipa.
Outra lembrança engraçada: ela morria de ciúmes do marido. Certa vez, contratou um detetive para tentar flagrar Manoel se enxerindo para umas vizinhas suspeitas. Não deu em nada! Encontrou Manoel trôpego, chamando urubu de meu louro, num boteco tipo pega-bêbado.
Joça e Manoel marcaram nossas vidas sem pedir licença para entrar, cativaram nosso afeto e fizeram moradia permanente nos nossos corações. Pessoas, como eles, entram em nossas vidas por acaso, mas não é por acaso que permanecem. Foram especiais. E ao modo deles, acenderam uma luz para clarear nosso caminho. Aqueceram nossos corações com o amor mais puro que existe.
O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, na vida existem pessoas e momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis. Aquele mundo povoado por nós no convívio com Manoel e Joça era cheio de coisas engraçadas. Eu rio até hoje vendo o filme do passado à minha frente.
Mas também choro. Joça era uma cigana, vivia na estrada, indo e vindo para a sua Tucano, na Bahia, onde moravam seus ancestrais. Eu ajudava a custear suas viagens. Fátima, minha irmã, era seu pombo-correio: escrevia as cartas para os pais de Joça. Como Fatinha era muito brincalhona e Joça não sabia ler, ao final das cartas ela, desconfiada de que minha irmã não escrevia o que ela queria transmitir aos familiares, conferia o teor pedindo para um de nós ler a carta.
Que figura! Quanta saudade! O sangue nos torna parentes, mas a lealdade é que nos torna família. Joça e Manoel eram extremamente leais aos meus pais. Quem pensa que família é só de sangue não entende o poder de uma conexão sincera, como esta que vivemos de forma tão simples.
Eles nos deixaram uma lição: família é quem te acolhe de braços abertos, não por obrigação ou laços sanguíneos, mas por amor. Família não é apenas sangue, são as pessoas que você escolhe.
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