A minha adolescência foi marcada por um canto, um canto de Sabiá, que atendia seus milhares de fãs no Brasil pelo nome de Clara Nunes. Nos anos dourados, na jusante do Rio Pajeú, meu coração explodia quando ela cantava “O mar serenou”, “Canto das três raças” e “Morena de Angola”. Clara foi uma das maiores e mais importantes estrelas da canção popular do Brasil de todos os tempos.
Iluminada, a sua obra atravessa gerações, rica em poesia, reflexões acerca da identidade de gênero, da etnia e do credo. Levantou debates sobre o preconceito étnico-racial e a intolerância religiosa, quando esses temas ainda se apresentavam timidamente no País, mesmo diante da eclosão de uma série de iniciativas com vistas à garantia das liberdades.
Liberdades individuais e coletivas principalmente do negro. Sincrética, a mineira de Caetanópolis “batia cabeça” e cantava ponto em terreiro de umbanda ou candomblé, tomava passe em centro kardecista e comungava em igreja católica, conforme li na sua biografia “Clara Nunes – Guerreira da utopia”, do jornalista e pesquisador Vagner Fernandes.
Leia maisDevorei de um fôlego só. Foi lá que descobri que o famoso Pai Edu, o maior babalorixá do Brasil, que tinha um centro em Olinda, batizou a cantora nas águas do Rio Capibaribe como filha de Oxum. Clara soube da existência do Pai Edu por meio de Dione, sua amiga em Pernambuco. Dione era vizinha do sacerdote do candomblé, cujo centro, o Palácio de Iemanjá, ficava no Alto da Sé, em Olinda.
Clara foi a uma festa de santo na casa do babalorixá e saiu de lá encantada. Pai Edu jogou os búzios. Deu Oxum na cabeça da cantora. Segundo o pai de santo, Iansã estava fora de questão. Clara voltou ao Rio, mas no fim de setembro retornou ao Palácio de Iemanjá. Entregou-se ao Pai Edu para uma cerimônia dentro do Rio Capibaribe, em 1971. Consagrou-se filha de Oxum, a poderosa senhora das águas doces.
A cerimônia de sagração cercou-se de beleza que caracteriza festas assim: flores e colares, baianas de branco entrando nas águas. Clara ficou de pé sobre uma pedra (que simboliza a moradia de Xangô, seu pai). Derramou um litro de água-de-colônia no rio, atendendo à vaidade da sua protetora, que aos poucos foi tomando conta da própria cantora, vestida toda de branco e de cabelos soltos.
No final, Clara quebrou uma garrafa de champanhe, simbolizando sua força contra o mal e a garantia de sucesso. A partir daí, Clara disse que ficou protegida de todo mal e dos invejosos que não aceitavam o seu sucesso, como Beth Carvalho, com quem convivia entre tapas e beijos. Mas o Pai Edu chegou a revelar mágoas com a afilhada de Oxum.
Numa entrevista a uma revista de futilidades da época, acusou a cantora, no auge do seu sucesso, de tê-lo abandonado. “A minha mágoa com a Clara é que ela deixou o certo pelo errado. Depois que me abandonou, ela acabou. Não sou fofoqueiro como disse ela, mas uma coisa é certa: jamais voltará a ser a primeira das cantoras enquanto não voltar”, disse.
E acrescentou: “Estão na sua frente Gal Costa, Alcione, Joanna, Simone, Beth Carvalho, Elba Ramalho, Terezinha de Jesus e Bethânia”. No seu livro, Fernandes conta a frustração da artista impossibilitada de ser mãe após alguns abortos espontâneos, detalha o infrutífero flerte da cantora com a Jovem Guarda – anos antes de Clara consolidar a carreira na década de 1970 com a imagem de sambista arquitetada pelo radialista e produtor musical Adelzon Alves – e revela a tragédia que acompanharia a carreira da artista como incômoda sombra do passado.
Trata-se do crime cometido em 3 de setembro de 1957 pelo irmão da cantora, José Pereira Gonçalves, conhecido como Zé Chilau, para “defender a honra” de Clara, difamada na interiorana cidade natal de Caetanópolis (MG) – cujo nome era Cedro até a mudança em 1954 – por namorado do tipo Don Juan. A relação do escritor Vagner Fernandes com a cantora Clara Nunes (1942-1983) é de longa data.
Vem, na verdade, dos idos da infância do autor, quando ele frequentava os ensaios da sua escola de samba do coração, a Portela. “Eu fiquei hipnotizado quando vi aquela mulher linda, lá em cima, toda de branco, com aquela energia cênica incrível. Estava fascinado com a cantora que eu tanto admirava da TV”, relembra Fernandes.
O que motivou a pesquisa incansável do autor foi dar profundidade às muitas histórias de Clara Nunes que estavam dispersas. A morte da cantora, por exemplo, é cercada de polêmicas: ela morreu por conta de uma reação alérgica a um anestésico durante uma cirurgia de varizes. “Comecei de maneira despretensiosa, querendo conhecer melhor a história e sem saber o que iria render. Meu livro é o único inventário biográfico da Clara. Fiz uma pesquisa completa do personagem, a fim de traçar um panorama muito claro da cantora”, diz.
Além disso, Vagner Fernandes buscou informações que revelassem histórias da personagem para além da idolatria dos fãs da cantora. “Clara era uma mulher absolutamente generosa e crente no seu ofício. Por isso, o ‘Guerreira da Utopia’. Clara acreditava nos amigos, no amor, no seu canto como instrumento de conciliação, na sua arte como veículo de transformação social”, sintetizou.
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