Vivi minha infância num tempo de luz de candeeiro, brincadeiras na roça, pião na praça, papagaios levados pelo vento. Fui menino de rua, pés descalços no chão abrasador do Sertão. Vim do Pajeú, lugar onde todo ser vivo tem alma de poeta. A infância é um tempo repleto de lembranças boas e ruins.
Mas quando recordamos, damos boas risadas, enchemo-nos de alegria, e muitas vezes recebemos lição de moral de nossas próprias atitudes passadas. O mundo não nos dá escolhas, como a de crescer e sair da infância até quando nos traz saudade. Dizem que olhamos para o mundo uma única vez, quando criança, porque o resto é memória.
Com apenas seis anos de idade, Roberto Carlos sofreu um trauma na sua infância que nunca mais esqueceu — a perna arrancada por um trem. Ele estava com a amiga Eunice Solino, apelidada de Fifinha, para assistir aos festejos de São Pedro em sua Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo.
Leia maisUma professora avistou as crianças perto da linha de trem e tentou alertar o maquinista. Roberto Carlos se assustou e tropeçou, sendo atingido na canela pela locomotiva a vapor. Na canção “O Divã “, o rei recorda seu drama: “Relembro bem a festa, o apito/ E na multidão um grito/ O sangue no linho branco/ Falou dos anjos que eu conheci/ No delírio da febre que ardia/ Do meu pequeno corpo que sofria/ Sem nada entender”.
Minha infância foi felicíssima em Afogados da Ingazeira, mas meus pais exageravam no cuidado: não podíamos comer nada fora de casa, sequer beber água na rua. Até banheiro público, meu pai proibia. Um dia quase faço o serviço nas calças saindo da escola em correria até minha casa.
Mas meu maior trauma era não poder passar no Beco de seu Zezé, onde Perna de Pau batia seu expediente como engraxate. Eu não tinha medo das suas piruetas amedrontando as crianças. Meu pavor, na verdade, era ver a sua perna mutilada, que muitos na cidade diziam ser um filme de horror. E ele a exibia diante das crianças.
Meu pai um dia foi engraxar o sapato com Perna de Pau e me levou junto. Tremi feito vara verde, me agarrei na cintura dele e chorei de medo. Foi uma cena tão deplorável que papai nunca esqueceu. Paciência! Mário Quintana, que leio para me inspirar, também recorda um perna de pau em uma das suas poesias. Mas apenas na imaginação, nada de sofrimento como o meu.
“Se a gente pudesse escolher a infância que teria vivido, com enternecimento eu não recordaria agora aquele velho tio de perna de pau, que nunca existiu na família, e aquele arroio que nunca passou aos fundos do quintal, e onde íamos pescar e sestear nas tardes de verão, sob o zumbido inquietante dos besouros”.
Ex-presidente de Moçambique, Samora Machel tornou-se um rebelde quando, ainda bem jovem, obrigado a estudar Teologia, fugiu do internato para cursar Enfermagem. É dele a frase: “As crianças são flores que nunca murcham”. Além de não murchar, o perfume e o frescor da infância devem permanecer com o mesmo aroma no invólucro da alma.
Quando crescemos, sempre encontramos maneiras de esconder ansiedades, solidão, medo e tristeza. Mas quando crianças, não escondemos nada. Colocamos tudo em lágrimas, que correm livremente para o mundo inteiro ver. Uma infância feliz, segundo Machado de Assis, é um enorme indício de um futuro brilhante e próspero.
Com o tempo, o senhor da razão, compreendemos que os “bichos papões” da infância não são nada se comparados aos “monstros papões“ da adultez. Que o espelho reflita no meu rosto um doce sorriso, que lembro ter dado na infância. Afinal, metade de mim é a lembrança do que fui. A outra metade eu não sei, como diz uma canção de Oswaldo Montenegro.
Desde que tornei-me adulto, tenho voltado à infância para desaprender a ser grande. Quando as lembranças da infância resolvem invadir nossa vida adulta, percebemos que a vida não é apenas curta. Sentimos a sensação de que todo tempo do mundo é pouco para vivê-la. A vida é como uma montanha russa: quando menos espera, a vida passou numa pressa tão grande que assusta.
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