Há seis crônicas seguidas, tenho falado de artistas. Hoje, meu tema seria amor e ódio. Parece-me fácil viver sem ódio, coisa que nunca senti, mas viver sem amor acho impossível, como diria o imortal Jorge Luis Borges, poeta argentino, que se consagrou pelo belo poema no qual, já cego, falou que se pudesse viver novamente o esplendor da sua vida não tentaria ser tão perfeito, poucas coisas levaria a sério.
Mas hoje resolvi continuar falando de artistas, tão comovido fiquei com a história vivida entre o sucesso, o amor e o ódio pelo baixinho Nelson Ned contada de forma extraordinária pelo jornalista André Barcinski no livro “Tudo passará, a vida de Nelson Ned, o pequeno gigante da canção”. Cantor romântico, Ned transformou o seu nanismo numa lição de vida quase perfeita diante de um mundo arraigado de preconceitos se não tivesse caído em tentações diabólicas.
Vivido anos loucos, na década de 70, no auge da sua carreira na qual ficou milionário, envolvido numa rotina que oscilava entre álcool, sexo, drogas, shows e companhias inusitadas de figuras como Pablo Escobar, chefe do cartel de drogas na Colômbia. Com figuras ainda como o General Durazo, chefe do Departamento de Polícia e Trânsito do México, e de Baby Doc, o sanguinário ditador haitiano, que ia ao delírio ao ver o baixinho cantar “Tudo passará”, seu maior sucesso.
Leia maisO pequeno-grande astro do romantismo desafiou até a Jovem Guarda embalada pelas músicas de Roberto e Erasmo Carlos. Consagrou-se como o cantor brasileiro que mais vendeu discos na América Latina, África e Estados Unidos. Tinha apenas 1,12 metro de altura, mas sua voz de gigante varreu e encantou o mundo. Entre compactos, LPs e CDs, vendeu 45 milhões de discos. Foi o primeiro latino a vender 1 milhão de discos nos Estados Unidos.
Chegou a se apresentar ao lado de grandes nomes da música romântica internacional, como Julio Iglesias e Tony Bennett. Apresentou-se no Carnegie Hall, em Nova Iorque, feito que se repetiu por quatro vezes com lotação total. Seus shows atraiam multidões, lotavam estádios e teatros. Tudo isso eu li no livro de André Barcinski, a quem entrevistei no Sextou em homenagem a Nelson Ned.

Das pouco mais de 200 páginas salta um personagem que, nas palavras do autor, faria um astro do rock como Keith Richards, guitarrista dos Rolling Stones, “parecer um escoteiro”. Ou melhor: o protagonista de um improvável filme que combinasse “Boogie Nights” com “Scarface” e “Nasce uma estrela”.
“O Nelson passa de 1975 a 1988 numa espiral de droga, loucura, sexo e orgias que eu nunca vi igual. Ele era um cara enfezado, arrogante e autoconfiante com um monte de amigos gângsters”, avalia Barcinski acerca do cantor que num dia poderia estar cantando na Colômbia para um Pablo Escobar em ascensão, noutro para o sanguinário ditador haitiano Baby Doc e ainda assim ser idolatrado por um expoente das letras como o colombiano Gabriel García Márquez.
Da pesquisa e demais entrevistas, feitas no Brasil e no exterior, Barcinski traçou o retrato do artista que sai da pequena Ubá, em Minas Gerais, com uma voz maior do que tudo e, em pouco tempo de Rio de Janeiro, ainda adolescente, lançou em 1964 o seu primeiro LP: “Um show de noventa centímetros” (título de reportagem publicada no ano anterior, da revista “O Cruzeiro”). Na capa, Nelson aparecia de smoking, ao lado de uma fita métrica — mas sob protestos, afinal já tinha mais de um metro de altura.
“Quanto menor você parecer ao público, melhor será para sua promoção”, argumentou o diretor da gravadora. Quando o cantor começou a ser premiado por sua música, a novidade do nanismo passou. Ainda em 1964, isso se torna um fardo para ele”, revela o autor, que no livro resgata slogans da época como “Este homem não se mede aos palmos! Mede-se às palmas!” e “o cantor-anão com voz de gente grande”.
“Se no começo era uma coisa que o ajudava a vender shows e a despertar interesse em revistas como “O Cruzeiro”, depois isso só dificultou a vida dele. Em 1966, quando Nelson vai para São Paulo cantar nas boates, ele é achincalhado pelo público”, diz o jornalista. Se alguém no Brasil ainda tinha dúvida sobre o status do cantor na América Latina, ela foi dizimada, segundo o autor do livro, quando o grande escritor colombiano Gabriel García Márquez se derramou em elogios ao baixinho.
Numa visita ao Rio, ele declarou: “Os artistas e intelectuais brasileiros dão risinhos de zombaria ou mudam de assunto quando revelo que tenho em casa todos os discos de Nelson Ned”. Gabo era mais que admirador de Nelson: eles eram amigos e se falavam com frequência. O escritor morava no México e Nelson, quando estava no País, sempre o visitava para longas conversas sobre música.
Gabo amava boleros. Nelson adorava romances como “Cem anos de solidão”, obra-prima do escritor, e chegou a posar para fotos na revista Manchete lendo o livro do amigo. Quando o apresentador Roberto D`Ávila entrevistou Garcia Márquez no programa Conexão Internacional, na TV Manchete, levou uma pergunta de Chico Buarque: “Se os seus romances fossem músicas, de que gêneros musicais seriam?” Gabo respondeu: “Seriam uns boleros vagabundos, buscando inspiração em Chico, mas cantados por Nelson Ned”. Chico fechou a cara!
Obcecado por sexo, Nelson Ned torrou rios de dinheiro em boates e prostíbulos no auge da sua carreira, onde vivia mais no exterior do que no Brasil. São incontáveis as conquistas amorosas do cantor, que foi casado duas vezes, em sua escalada internacional, que tem como marco a participação no 1º Festival da Canção Latino-Americana de Nova York, em 1970.

A fama de garanhão era maior até mesmo que as dores lancinantes nos ossos (agravadas, no nanismo, por dois acidentes automobilísticos, nos quais foi arremessado pelas janelas dos carros), as quais só suportava tomando morfina. O álcool e a cocaína (pura, obtida diretamente dos amigos chefões do tráfico) se somaram ao coquetel químico que o deixou sujeito a variações abissais de humor.
À fama, drogas e mulheres, Nelson Ned ainda acrescentou uma fixação por armas, que guardava em um cofre junto com dólares e cocaína. Numa briga com a esposa, deu tiros que a feriram, mas não tiraram a vida dela. O lado sombrio se manifestava, mas ele ainda conseguia fazer graça. “Ninguém zoava com Nelson Ned, era ele mesmo que se zoava. Nos shows, Nelson dizia: “Eu sou pequeno, mas algumas partes de mim são muito grandes.” E quando já estava todo mundo rindo, ele completava: “Partes como o meu coração.” — relata André Barcinski.
A partir de 1976 (quando se converte ao Evangelho e grava o LP “O poder da Fé”), Nelson passa a intercalar discos gospels e seculares. Nos anos 1990, a religião o dominou por completo e sua carreira declinou em termos comerciais — mas não só por causa da opção artística. Sua saúde foi se degradando, ele teve um derrame, perdeu a visão de um olho, enfrentou a concorrência da música sertaneja e ainda chorou a morte dos pais e do seu empresário, Genival Melo.
“Em dez anos, Nelson Ned passou de cantor brasileiro mais famoso do mundo a um cara pobre com as irmãs pagando o tratamento de saúde — lamenta Barcinski, ressaltando que, em nenhum momento, ele deixou de fazer shows para o público mais pobre, para quem ele nunca deixou de ser um ídolo. “E essa idolatria vem muito do fato de ele ser visto pelas pessoas como um milagre. Tinha algo de místico, de mágico no Nelson”, diz.
Não fosse a coragem e a determinação da mãe de Nelson Ned ele nunca teria sido gente. Ao voltar da escola chorando vítima de bullying, o pai chegou a sugerir à mãe que o garoto fosse desligado do colégio e tivesse aulas particulares em casa. Dona Ned Pinto bradou: “Vou criar meu filho para o mundo, e não um mundo para meu filho”.
E o mundo consagrou Nelson Ned!
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