Fui criado moleque de rua, pés descalços na terra seca do Sertão. Cresci num mundo de paz, mas povoado por personagens que me davam pavor, como Zé Doido, que revidava as provocações dos meus amigos de infância, em Afogados da Ingazeira, atirando pedras.
Havia também Coqueirão, um gasguito de tão magra, mas tão alta que tirava coco sem vara. Também Isabé Galinha, uma maltrapilha que não tomava banho. Zé Pretinho, Dom João e Perna de Pau também ainda continuam remoendo as memórias dos meus anos dourados.
Leia maisIsso me faz lembrar as lições de Cora Coralina: o saber a gente aprende com os mestres e os livros, mas a sabedoria se aprende com a vida e com os humildes. Zé Doido tinha a loucura que só compreendi quando li Machado de Assis pela primeira vez. “A loucura é uma ilha perdida no oceano da razão”, escreveu o maioral dos cronistas brasileiros.
Ninguém nasce louco. A vida, sim, é que é enlouquecedora. Como me doía ver meus amigos infantis insultar Zé Doido. Carlos Drummond de Andrade tem um poema que se insere no mundo dos personagens folclóricos, divertidos, mas ao mesmo tempo produtos das desigualdades deste país desigual: “Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar”, resumiu ele.
Quando falo do meu passado, falo também de saudade. A saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas. O tempo é um rato roedor das coisas, que as diminuem ou alteram no sentido de lhes dar outro aspecto.
Em Menino do Engenho, José Lins do Rêgo também manifesta traumas da sua infância. A maior delas foi a morte da mãe. “A morte de minha mãe me encheu a vida inteira de uma melancolia desesperada. Por que teria sido com ela tão injusto o destino, injusto com uma criatura em que tudo era tão puro?”, escreveu.
Como eu, que não entendia de nada, nem muito menos sabia explicar o povoamento de tanta gente débil em minha cidade, José Lins do Rêgo também foi no mesmo diapasão. “Eu não sabia nada. Levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o meu corpo”.
Fernando Pessoa foi um poeta de alma muito parecida. “Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”, disse num poema. A gente cresce, rompe o cordão umbilical, mas vive catando pedaços do que vivemos quando escrevemos. Eu sou do tamanho do que vejo o meu mundo todo próprio e não do tamanho da minha altura.
Clarice Lispector, que li muito em várias fases da minha vida, me ensinou: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.
Como diz Coralina, todos estamos matriculados na escola da vida, onde o mestre é o tempo.
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