Por Flávio Chaves*
A vida, em sua superfície de aparências e compromissos, parece seguir um rumo tão absurdamente organizado que beira a mentira. As manhãs nascem como se estivessem certas do que virá, os homens se vestem como quem veste um papel, e os dias passam numa sequência de gestos programados, sem espanto, sem pausa, sem verdade. Mas por baixo dessa engrenagem domesticada, há um subterrâneo em constante combustão, um lugar onde a pele do mundo não é suficiente para conter o que pulsa. Ali, ali vivem os que não conseguiram se adaptar ao silêncio das multidões: os solitários, os poetas e os loucos. Não como categorias distintas, mas como matizes do mesmo desespero.
São aqueles que, mesmo sorrindo, sabem que há um cansaço de alma que não repousa. Sentem o mundo como quem anda com o coração do lado de fora do corpo, exposto aos ventos, às farpas, aos olhares que não veem. Eles não se encaixam no relógio social que transforma o tempo em mercadoria. Para eles, o tempo não passa, dilacera. E cada dia é um campo minado de sensações, onde qualquer cheiro, palavra ou ausência pode ser o estopim de uma lembrança que ninguém entenderia. Porque a vida para esses seres não é um caminho, mas um labirinto. E não é o fim que os assusta, mas a repetição infinita das paredes.
Leia maisEles não têm medo de amar, mas amam como quem segura uma faca pelo fio. São os que olham para o outro com um tipo de fome que não se sacia com presença, mas com alma. Por isso sofrem tanto. Porque sentem em excesso. E num mundo que adestra os sentimentos até que fiquem inofensivos, quem sente muito é tratado como ameaça. É por isso que vivem nas bordas, como se fossem erro de tipografia na página da existência. A sociedade os olha com curiosidade ou piedade, mas nunca com real compreensão, porque compreender implicaria admitir que há algo profundamente errado com o centro.
Esses seres não pedem respostas. Suportam o peso das perguntas como quem carrega uma criança ferida nos braços. Sabem que a lucidez é um risco, e que muitas vezes a loucura é apenas a forma mais corajosa de continuar vivo. São eles que ainda escrevem cartas sem destinatário, que ainda choram diante de uma música antiga, que ainda se deixam abalar por um pôr do sol que parece ter sido pintado só para doer mais um pouco. São eles que sustentam, sem saber, a parte mais humana do mundo. E, no entanto, são também os mais impiedosamente tristes.
Não porque desejem essa tristeza, mas porque ela é o preço de ver demais, de amar demais, de lembrar demais. Eles vivem como quem caminha num campo de espelhos partidos, tentando recolher os cacos sem ferir os pés. Sabem que a existência não é uma estrada, mas uma espiral. E que cada retorno é mais profundo, mais escuro, mais verdadeiro. Por isso, escrevem. Por isso, se calam. Por isso, dançam quando ninguém vê. Não para fugir, mas para permanecer.
No fundo, são eles que carregam o mundo. Não o mundo das manchetes, dos números, das celebrações públicas. Mas o mundo que chora em silêncio, o mundo que se esconde atrás de portas fechadas, o mundo que ainda sonha mesmo quando tudo parece desabar. E talvez, só talvez, a salvação venha justamente desse lugar onde habita a tristeza sem nome — essa tristeza que não destrói, mas transforma. Porque só quem sofreu demais é capaz de amar com verdade. E só quem se perdeu muitas vezes sabe encontrar beleza naquilo que já não brilha para os outros.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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