Ainda em Afogados da Ingazeira, meu chão seco e amado de vidas secas, faço alusão hoje a três símbolos que marcaram minha infância e adolescência. O primeiro é a majestosa e imponente Catedral, uma das mais belas obras góticas do Sertão. Lembra muito as igrejas europeias.
Mamãe era católica ardorosa. Garoto, no mês de maio, o chamado mês Mariano, ela me arrastava todos os dias para assistir à missa com ela. Mas os sermões do padre eram longos e modorrentos. Caia no colo dela e dormia feito um anjo. Tempos bons, inesquecíveis.
Leia maisO segundo retrato dolorido na parede, igual ao de Drumond em sua Itabira mineira, é o prédio dos Correios e Telégrafos, conservado até hoje com sua arquitetura colonial. Esta lembrança é também muito forte. Quando passo por lá, vejo meu pai Gastão Cerquinha, que Deus chamou aos 100 anos e sete meses, carimbando cartas e escrevendo missivas para a matutada dos sítios e lugarejos que não sabia ler e vinham em busca de notícias dos seus filhos que haviam trocado o aconchego da casa do mato e dos pais pela aventura desesperada de um emprego em São Paulo.
Papai era a Dora de calças, personagem vivida por Fernanda Montenegro em Central do Brasil. Foi vendo ele assim, o comunicador da gente simples do Sertão, que comecei a despertar para o jornalismo. Afinal, telegramas e cartas eram noticias, embora exclusivas para seus destinatários. Meu estalo para as comunicações foi dado dentro do prédio da ECT, em Afogados da Ingazeira, não tenho a menor dúvida.
Meu terceiro e último símbolo da minha jornada saudosa em Afogados da Ingazeira tem sofrimento em seu verniz. Está ainda intacto no prédio do antigo ponto comercial do meu pai, na Avenida Manoel Borba: a Casa Gastão, de armarinho e miudezas. A razão social era em nome de minha mãe Margarida Martins da Fonseca, porque papai era servidor público federal e por cima político – foi vereador e vice-prefeito. Nada podia estar em seu nome.
Tudo tinha que ter a assinatura dela. Mas, quando chateada com papai por um motivo ou outro, mamãe resistia. Não conto as vezes que papai me mandava como pombo correio em busca de uma assinatura dela. “Diga a ele que hoje não assino nada”, berrava mamãe. Mas depois, ao fim do estado colérico, assinava.
Mamãe era arriada os quatro pneus por papai, como se diz por aqui. Mas o sofrimento diz respeito a um trauma de outra natureza: abrir os caixotes de mercadorias que chegavam do Recife por trem, direto para a loja. Marcelo, meu irmão, me fazia companhia na empreitada. Não era fácil. Eram mais de 40 unidades. Minhas mãos sangravam, cortadas por uma prenda de metal lacrada nos caixotes.
A vida é a infância da mortalidade, já li isso em algum lugar. Lembro também de um provérbio chinês que diz que o grande homem é aquele que não perdeu a candura de sua infância. A vida humana não tem só um nascimento, só uma infância, é feita de vários renascimentos, de várias infâncias, me ensinou o passar dos tempos, a chegada dos cabelos brancos.
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