Miguel Arraes passava a impressão de que trabalhava a questão do humor em sua vida provavelmente como efeito terapêutico, tendo em vista que os políticos em geral convivem pulando fogueiras de cargas emocionais pesadas. Dormia tarde, acordava cedo, como todo bom sertanejo madrugador.
E lia muito. Tinha formação humanística e uma bagagem cultural admirável. Dizem que virou um devorador de grandes clássicos quando exilado na Argélia. Arraes lia naquelas cadeiras de balanço de palha e não gostava de ser incomodado.
Leia maisCorria o ano de 84 e o País iria entrar numa eleição indireta do Congresso, decisiva para pavimentar o processo da reabertura política e em seguida, em 1989, a primeira eleição direta para presidente depois do golpe de 64.
Tancredo Neves era a chama da esperança na disputa no colégio eleitoral contra Paulo Maluf, que se fortalecia na compra aberta, afrontosa e descarada dos votos dos congressistas.
Arraes era peça fundamental nesse jogo. Como principal liderança de esquerda, ajudou a consolidar a candidatura de Tancredo para o chamado governo de transição. Num certo dia, já tarde da noite, toca o telefone em sua casa e dona Madalena, sua esposa, atende.
Do outro lado da linha, um homem berrava, pedindo para falar com Arraes. Dona Madalena diz: “Miguel, tem um tal de Peron, de Afrânio, querendo falar com você aqui”.
Pai de Rafael Cavalcanti, atual prefeito de Afrânio, no Alto Sertão, já na divisa com o Piauí, João Peron Cavalcanti já foi um dos mais importantes líderes políticos do Sertão. Gozava da intimidade com Arraes para dizer coisas que poucos que o conheciam tinham coragem, olho no olho.
Arraes atende com cara de reprovação, não por descortesia com o amigo, mas pelo avançar da hora, já o relógio próximo da meia noite. E diz: “Diga, Peron, o mundo acabou para você me ligar a esta hora ou caiu um dilúvio em Afrânio?”
“Nem uma coisa nem outra, doutor Arraes. Estou ligando por um motivo muito republicano”, rebateu o cacique sertanejo. E completou: “Pelo amor de Deus, doutor Arraes, em nome do amor que o senhor tem pelo Brasil, não deixe Tancredo escolher Sarney como vice na sua chapa”.
Peron não era pai de santo, mas parece que naquele dia havia recebido uma carga sobrenatural, com capacidade superior e fora de compreensão, pois Tancredo ganhou a eleição, mas morreu de diverticulite antes da posse, assumindo Sarney.
Com a sua peculiar veia cômica, Arraes diz: “Peron, o que posso fazer? Acho que a essa altura nem os elementos do cosmos, o sol, a lua e as estrelas, seriam capazes de convencer Tancredo, até porque acho que ele nem reconhece a existência dessas divindades”.
Seja o que Deus quiser, reagiu Peron, encerrando a conversa com Arraes gargalhando ao telefone.
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