Só agora, a caminho de Brasília, a dez mil pés, como informa o comandante de pássaros gigantes que conduzem seres humanos encurtando distâncias, me dei conta da minha noite mal dormida. Há exatamente dez anos, de madrugada, fui nocauteado com à notícia da morte de minha amada mãe.
Veio ao mundo com nome de flor: Margarida. Deus a chamou aos 86 anos, em Afogados da Ingazeira. Meu olhar de despedida em direção à sua angelical face, já envolta num caixão, foi numa tarde ensolarada.
Leia maisOlhar de despedida é triste. E numa tarde, aterrorizante. Foi num crepúsculo que Albert Camus percebeu que o voo dos pássaros pela manhã é diferente do voo dos pássaros ao cair da noite.
De manhã, eles voam sem destino, em todas as direções. Ao cair da noite, voam em linha reta, voltando para casa. Naquele dia tinha uma tristeza maior dentro de mim, consumindo minha alma, abalando meu espírito, ferindo meu coração.
No meu coração de poeta, como ela dizia alegremente e orgulhosa do filho. Eram minhas raízes que doíam, arrancadas do chão, no chão seco e esturricado que ela me criou. Quando a seca chegava, a gente batia os pés no chão para espantar a poeira das estradas sem fim e sem começo.
Sertão falta tudo, dizia ela, para completar: “vá logo se acostumando”. Faltava água. Havia até uma quadrinha que mamãe cantava pra gente ouvir e rir: “Afogados da Ingazeira, cidade que me seduz. De dia falta água, de noite falta luz”.
Na escuridão das noites, mamãe nos iluminava com luz de candeeiro. E velas, também. Não há gente rica no Sertão. Mamãe foi pobre, doméstica, de poucas letras, mas sábias palavras. Meu avô, caminhoneiro, tangido até Afogados da Ingazeira por uma seca mais implacável do que as do Pajeú: da paraibana Monteiro.
Fui um menino chorão, mamãe me dizia. Mas só hoje compreendo meu coração fraco. É que fui criado numa região muito sofrida. E quando vejo uma pessoa sofrendo, sofro também. O meu coração fica junto ao coração dela. Mamãe não era assim. Era dura na queda. Não tinha medo de nada. Só da maldição dos pecados, dizia ela, bastante católica, quase uma beata.
Não consigo distinguir a memória do que vi do que fui sem me transportar para o mundo da minha mãe. Meus olhos, hoje em lágrimas de saudade, trazem o que está fora para dentro de mim. E o que está dentro de mim é a minha mãe. Meus olhos a veem e percebem que ela está me conduzindo com sua sabedoria, seus conselhos, sua imensa alegria de viver eternamente.
Meu corpo é do tamanho do olhar dela do céu. De lá, tenho a impressão que os olhos dela têm braços também, que vão até as estrelas.
Minha mãe é uma estrela radiante. Não vai deixar nunca de brilhar para iluminar meus passos até o dia que Deus me chamar para ficar bem pertinho dela, bem grudado, como ela me botava no colo enquanto ouvia os sermões de Dom Francisco, na Catedral de Afogados da Ingazeira.
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