Por Marcelo Tognozzi
Colunista do Poder360
Minha irmã e eu descíamos a rua Oriente, em Santa Teresa, todo fim de tarde voltando do colégio Cantinho Feliz e entrávamos em casa pela porta da cozinha, o rádio de pilha com capinha de couro da Lurdininha tocando músicas do Evaldo Braga, Agnaldo Rayol, Roberto Carlos e anunciando a Gordura de Coco do Norte, aquela da lata azul feita com babaçu. Quando o relógio marcava 6 horas, entrava o vozeirão do Alziro Zarur rezando a Ave Maria. Tinha uma audiência enorme. Parecia que o Rio de Janeiro parava para rezar com ele naqueles anos do fim da década de 1960.
Alziro fundou a LBV (Legião da Boa Vontade) em 1º de janeiro de 1950. Morreria 29 anos depois, em 21 de outubro de 1979. Dali em diante, sua obra foi tocada por José de Paiva Netto, então com 38 anos, forjado por Alziro Zarur para ser seu substituto numa organização transformada em máquina de fazer o bem. Quando tinha 15 anos, Paiva Netto decidiu se unir ao homem que orava todos os dias pelo rádio, levando sua mensagem “aos homens de boa-vontade”.
Leia maisPaiva Netto estudou no Colégio Pedro 2º, um dos mais tradicionais do Rio, ganhou o título de aluno iminente, honraria concedida aos que tinham performance bem acima da média. Filho do seu Bruno e da dona Idalina, José Simões de Paiva Netto desembarcou no planeta Terra em 2 de março de 1941, no bairro do Riachuelo, no Rio. Era um mundo em plena 2ª Guerra Mundial, o nazismo tomando a Europa e Vargas se equilibrando entre a Alemanha e os Estados Unidos.
Veio ao mundo com uma missão: ajudar as pessoas. Na terça-feira (7), Paiva Netto nos deixou depois de 7 décadas dedicadas à causa social da LBV. Ele era pouco mais que uma criança, quando uma senhora negra lhe entregou um panfleto com a mensagem de Alziro Zarur sobre Jesus Cristo.
Aos 84 anos, Paiva saiu da vida e entrou para o seleto grupo dos brasileiros que se dedicaram a fazer deste país um lugar melhor para todos. Partiu num outubro, igual seu mestre.
Ele verdadeiramente amava as pessoas. Ainda adolescente já trabalhava na Ronda da Sopa, campanha lançada por Zarur para combater a fome entre a população de rua do Rio. A Ronda da Sopa ganhou versões em outros países e chegou até Nova Iorque.
O corpo de Paiva viajou do Rio para o cemitério Memorial Jaraguá, no pé do Pico do Jaraguá, ponto mais alto de São Paulo. Lembrei da minha avó Maria e do Sermão da Montanha que ela leu para mim algumas vezes. Neste sermão, Jesus ensinou o Pai Nosso, que na manhã de quarta-feira (8) foi cantado por um coral de vozes emocionadas, enquanto Paiva era velado por uma multidão de amigos e admiradores. Fui levar meu abraço ao seu filho Alziro, meu amigo de fé, inteligência rara, herdeiro do talento e do entusiasmo do pai fazedor.
A LBV foi a 1ª ONG brasileira. Nasceu da enorme capacidade de comunicação de Alziro Zarur. Paiva Netto, assim como seu mestre, foi um comunicador de mão cheia. Tinha linha direta com o divino e o profano, era liberto de preconceitos e a maior prova disso foi o templo ecumênico por ele erguido em Brasília, frequentado por todos a qualquer hora. Fui lá muitas vezes rezar debaixo do imenso cristal fixado no teto, andei na roda do infinito e sempre saí com as baterias recarregadas. Um lugar de paz.
A marca da LBV sempre foi a comunicação. E por causa dela Paiva Netto sofreu grande ataque do Grupo Globo no início dos anos 2000, acusado de usar dinheiro das doações da LBV para enriquecimento pessoal. Foi absolvido. Seu advogado Márcio Pollet mostrou terem as denúncias surgido depois de a LBV receber a concessão da geradora de TV de São José dos Campos, também cobiçada pela Globo.
Paiva Netto sempre foi um homem de bem, uma pessoa honesta. Não é possível igualá-lo aos pastores malandros que brotam Brasil afora como cogumelos no esterco. Nunca profetizou a fé por dinheiro, mas por amor ao próximo.
Sua obra foi reconhecida pela ONU e vingou nos Estados Unidos, em Portugal, na Argentina, na Bolívia, no Paraguai e no Uruguai. Em 2024, atendeu a 6,6 milhões de pessoas em todo o Brasil, das quais 14.000 alunos em escolas espalhadas pelas 5 regiões do país. Não foram poucas as vezes em que reuniu 100/150 mil pessoas e rezou com elas. No seu coração cabiam multidões.
Existem lições inesquecíveis dadas por Alziro e Paiva. A primeira e principal delas: quando você dá o melhor, recebe o melhor de volta. Se você dá uma escola boa, você recebe bons cidadãos; se você dá acolhimento e amor, recebe uma sociedade sem violência. Neste país polarizado entre o “nós e eles”, pregar tolerância e solidariedade até soa como heresia.
Este era o eixo do pensamento de Paiva Netto. Nesta quadra da nossa história, em que a vagabundagem, a esperteza e a mentira contaminaram a política, a fraude virou cotidiana – seja no INSS, no combustível ou na bebida –, nada como celebrar o homem que pregava honestidade e compaixão, valorizou a paz e depreciou a violência.
No templo da Boa Vontade em Brasília, está exposto o velho microfone usado por Alziro Zarur nas suas pregações pelo rádio, as mesmas que ecoavam pela cozinha da nossa casa na hora do Angelus. A LBV de Paiva Netto fincou raízes profundas na sociedade, especialmente entre homens e mulheres que puderam transformar seus destinos pela educação, pelo acolhimento e pelo alimento. Paiva seguiu para a eternidade sem escalas, deixou essa obra imensa toda ela construída em nome do amor.
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