Do UOL
Alguns adultos têm o costume de dormir com pelúcias, outros guardam com cuidado brinquedos que ganharam na infância e há ainda os que assistem a desenhos infantis em momentos de estresse como forma de “conforto”.
Os hábitos são aparentemente comuns, e inofensivos, mas há um grupo de pessoas que os levam a níveis um pouco mais extremos: elas chupam chupeta, mamam na mamadeira e brincam de boneca.
Leia maisEsse fenômeno ganhou notoriedade nos últimos meses após uma onda de adultos ao redor do mundo, principalmente na China, assumir as práticas peculiares nas redes sociais. Apesar da recente exposição, muitos já guardavam esses segredos há tempos em suas privacidades.
Isabella*, 26, começou a usar chupeta por volta dos 18 anos em um processo de se infantilizar logo após ser diagnosticada com transtorno Bipolar e de Borderline. Ela criou coragem para concretizar esse desejo depois que a cantora americana Melanie Martinez apareceu na mídia com trajes infantis a partir de 2016.
“Quando estou lendo, estou usando chupeta. Quando estou assistindo série, estou usando chupeta. Ou então, estou bebendo um leite com Toddy na mamadeira. É tão confortável. Sabe quando você está muito mal e existe somente uma coisa que te deixa mais em paz?”, relata.

A mulher contou ainda ter feito a prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) em 2017 usando o objeto. “Falei para a moça que estava orientando a prova ‘olha, eu estou muito nervosa e só consigo me acalmar com a minha chupeta’.” Com estranhamento, a aplicadora aceitou.
“Não me vejo como adulta”
Isabella também passou a usar roupas com personagens, pintou o cabelo colorido e fez uma franjinha. Tudo isso porque ela admite não se sentir uma adulta, mas sim uma adolescente.
A jovem entende que tentar parecer mais nova é uma forma de fugir dos problemas da vida madura. “Isso é uma fuga. O ‘Age Regression’ não é um tratamento, nem uma salvação, é uma fuga como o cigarro, a droga e a bebida alcoólica”, diz.
“É como se você pudesse, dentro da sua cabeça, voltar no tempo. Não de uma forma literal, obviamente, mas esses objetos fazem você se sentir com aquela sensação de colo, de você dormir no sofá e o seu pai te botar na cama. É essa sensação que tenho quando uso a chupeta: de colo, de abraço, de acolhimento, de carinho, de atenção”, completa Isabella.
A atriz e influenciadora Heloisa Berutte Canabarro, 27, mais conhecida como Lolly Vomito na internet, também cita ter um apego por sua coleção de bonecas, com que brinca até hoje. Para ela, no entanto, a relação diz sobre um modo de manter um “universo lúdico” vivo dentro de si.
“Eu tenho várias bonecas, criei vozes e personalidades para elas. Dormir com as minhas bebês me faz sentir aconchegada, amada por mim mesma, abraçada, dentro de um sonho”, explica.
Manter o universo lúdico?

Heloisa argumenta que esse universo infantil costuma escandalizar parte da sociedade porque “o adulto é condicionado a ter uma rotina, a ser responsável, uma máquina do sistema”. “Quem determinou que o adulto não pode ser bobo e ter uma pausa dentro de toda essa rigidez?”, questiona.
A atriz afasta as acusações de “infantilização” e entende que os adultos são chamados constantemente para revisitar suas infâncias. “A única coisa que objetos infantis podem influenciar em um adulto é fazê-lo mais poético, mais artístico e que ele consiga colorir o seu próprio mundo”, acredita.
Ela também vê no comportamento um jeito de cultivar pessoas que sejam mais empáticas e sensíveis com as crianças: ”Se você não sabe se colocar no lugar da criança enquanto adulto, como é que espera que ela tenha acesso ao que precisa para se desenvolver? Qual foi o pai ou a mãe que nunca foi numa loja de brinquedos e pensou mais no presente que gostaria de ter tido na infância?”
Linha entre hábito saudável e adoecedor é tênue, dizem analistas
A psicóloga e psicanalista Raquel Baldo entende que esses pertences podem surgir como uma reação a um meio marcado pelo excesso de trabalho, violências, tabus, padrões e aprisionamentos típicos de existir em sociedade.
Assim, alguns adultos encontram o “brincar” como uma forma de lazer, hobby e até colecionismo em meio às rotinas. Baldo exemplifica com o caso de pessoas que mantêm na parede uma coleção de carrinhos, ou que “brincam” de trocar peças de algum automóvel.
“Inconscientemente, algumas pessoas usam como recurso para voltar a um lugar muito antigo da nossa história, que era onde a gente sentia que estava protegido e livre de imposições.”
Para ela, a relação com esses objetos infantis pode ser uma forma de “acolhimento da criança interior” e de nostalgia, desde que não suscite o desejo de retornar à infância.
Podem ser usados como “muleta emocional”?
O psiquiatra Gabriel Okuda, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, alerta que em situações mais extremas, os itens —principalmente a chupeta— podem se apresentar como um “mecanismo desadaptativo” se utilizados como fuga da realidade.
“Porque não resolvem o problema de fato, não resolvem a frustação, a angústia da vivência do cotidiano, apesar de trazerem algum acalento e alívio imediato”, justifica. Pelo contrário, podem ser reforçadores de sintomas e propulsores de adoecimento, segundo ele.
Os dois especialistas concordam que os hábitos infantis em seus extremos têm um funcionamento semelhante ao cigarro e outros vícios. Okuda fala que todos eles são como “muletas emocionais”. Começam como um mecanismo de alívio, mas trazem dependência a longo prazo.
“O cigarro é tido como objeto de adulto, por isso que ele é ‘aceito’ pela sociedade. Mas é tão prejudicial no psíquico quanto a chupeta. Tão quanto, mas com uma diferença muito importante: ele não repete o lugar declarado de ‘eu quero voltar a ser um bebê’. Ele é uma repetição de uma falta, ele conta questões importantes não amadurecidas.”, explica a psicanalista Raquel Baldo.
O comportamento também pode revelar sobre faltas afetivas na fase inicial da vida, de acordo com a psicanalista. Por isso, Baldo compreende que algumas dessas pessoas podem fantasiar retornar para os primeiros anos de existência como uma possibilidade de ser amado como desejava e precisava.
“Se eu não tive, eu não tenho como ter de novo. Eu posso viver hoje, posso dar isso para alguém. Eu posso me dar enquanto adulto, mas não tenho como voltar lá atrás e tentar fingir que eu ganhei para poder seguir daqui para frente”, continua Baldo. “Estamos falando realmente de sequelas que precisam ser ouvidas, suportadas, acolhidas e ressignificadas em tratamento psíquico, mas não reforçadas”, conclui.
Infância como movimento estético
Ney Branco de Miranda, psicanalista e doutor em filosofia, acrescenta ainda que o movimento ganhou “estilização” ao ser divulgado nas redes sociais. Ele destaca que, em alguns casos, trata-se de um “construto de imagem” para ser apresentado para o outro, e não necessariamente uma conduta que realmente era mantida na privacidade do indivíduo.
Miranda compara com fenômenos do mundo da moda, em que se cria uma estética e a incorpora em sua identidade. O especialista também acredita que o número de adultos que de fato faz uso de objetos infantis são em número menor do que passou a aparecer ao público nos últimos meses.
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