Por Marcelo Tognozzi
Colunista do Poder360
Beremiz Samir, o homem que calculava, era um sábio para quem a diplomacia apaziguava conflitos e acomodava interesses. Um belo dia, ele encontra três irmãos discutindo sobre uma herança de 35 camelos. O pai deixara um testamento dizendo que o filho mais velho receberia metade dos camelos, o do meio 1 terço e o mais novo 1 nono. Mas 35 não era divisível nem por 2, por 3 ou por 9. E os irmãos estavam à beira de uma guerra familiar.
Ele pensou um pouco e propôs o seguinte: incluiria o seu camelo e assim seriam 36, número divisível. Assim, o mais velho ficou com 18 camelos, o do meio com 12 e o mais novo com 4. A soma dos camelos dava 34. Um foi devolvido a Beremiz e outro ficou de presente como gratidão por ele ter resolvido a questão sem brigas e discussões.
Leia maisA fábula foi contada por Malba Tahan no seu best-seller “O Homem que calculava”, lançado em 1938 e sucesso até hoje. Mais que um livro de aventuras, traz na sua essência pílulas de sabedoria. O herói Beremiz Samir é alguém que sempre busca a paz e escapa dos confrontos. Sua sabedoria é diplomática, porque mostra que é possível alguém conseguir o que deseja sem briga, não importa se você é o mais forte ou o mais fraco.
Diplomacia, como ensinou o embaixador dos embaixadores Paulo Tarso Flecha de Lima, é antes de tudo inteligência e estratégia. Melhor uma vitória sem conflito do que uma guerra com consequências imprevisíveis. Foi com essa mentalidade que os líderes europeus conseguiram mudar a relação com Donald Trump, embora muitos deles ainda continuem torcendo o nariz para o presidente norte-americano no privado. Em público, agiram para travar o comportamento disruptivo do líder do país mais rico do planeta.
Na última quinta-feira (21), o Wall Street Journal revelou numa reportagem de Daniel Michaels e Laurence Norman, como os principais líderes europeus que escoltaram Volodymyr Zelensky até a Casa Branca na segunda-feira (18), neutralizaram o temperamento de Trump usando ferramentas de inteligência, bom senso e uma diplomacia exemplar.
Mostraram ao mundo a sedução como arma diplomática. Ninguém se humilhou ou pagou mico. Ao contrário, saíram do encontro na Casa Branca com uma vitória, dobrando o presidente dos Estados Unidos, que terminou sendo suave e cortês, em vez de usar e abusar da sua verborragia característica. Estudaram a fundo a personalidade e o comportamento de Trump e o resultado saiu melhor que a encomenda. Nada como um dever de casa bem feito.
Zelensky chegou de preto, dando um recado ao chanceler russo Serguei Lavrov, que apareceu no Alaska com um moletom com a sigla CCCP da antiga União Soviética. “O padrão europeu é esperar, se preocupar e reclamar. Este é o pior instinto possível para lidar com Trump. O que você precisa fazer é ser positivo, fazer sua própria lição de casa e ter suas próprias propostas e ser proativo. Acho que segunda-feira foi uma boa demonstração de todos descobrindo como fazer isso”, explicou didaticamente Kurt Volker, ex-representante especial dos EUA para a Ucrânia durante o 1º mandato de Trump.
Os europeus mostraram que a primeira lição que aprenderam foi dizer obrigado. Trump mencionou durante o encontro que já resolvera seis guerras e ouviu “thank you” ser dito por 30 vezes pelos europeus, enquanto ele agradecia outras 12 vezes. Massagearam o ego do presidente, que entendeu o recado respondendo com mesuras e elogios.
Desde que Trump venceu as eleições, a inteligência da União Europeia sabia que as tarifas seriam um ponto nevrálgico das relações com os EUA. Por isso, começaram desde cedo a conversar com Trump e sua equipe. Antes da posse, seus emissários já frequentavam as rodas da diplomacia trumpiana, que viria a ser comandada pelo senador Marco Rubio. Evitaram ataques frontais e provocações. Se precisassem colocar um camelo no jogo para fechar as contas, fariam isso de bom grado.
Trump valoriza as palavras e a presidente da Comissão da União Europeia Ursula von der Leyen passou a falar mais em tarifas do que em sanções contra os russos. O presidente norte-americano percebeu a mudança de tom e gostou. Von der Leyen também parou de falar em cessar fogo a qualquer custo, adotando o discurso de que é imperativo acabar com a matança.
Mas o ponto alto da reunião foi protagonizado por Zelensky, agora exímio engolidor dos sapos da reunião de fevereiro quando tomou um puxão de orelhas de Trump e seu vice JD Vance. Passou a falar a mesma língua de Trump, cria do setor imobiliário, quando mostrou um mapa da Ucrânia e explicou a situação territorial do seu país, mostrando que Putin queria tomar territórios. Lembrou que os EUA ocuparam a Flórida no início do século 19, quando a Espanha não teve mais como manter a região em função das guerras napoleônicas. No caso da Ucrânia, não havia isso.
Enquanto Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, adotou o discurso da direita que Trump admira, o presidente da Finlândia, Alexander Stubb, virou parceiro de golfe do presidente dos EUA.
Trump deu sinais de que tinha sido seduzido pelo charme europeu quando elogiou o bronzeado do chanceler alemão, Friedrich Merz, chamou Ursula von der Leyen de mulher mais poderosa do grupo e elogiou o poder jovem de Stubb. O único que não mereceu afagos de Trump foi Emmanuel Macron, presidente da França, que tem errado e perdido espaço na política, liderando um governo onde ninguém se entende, e, como diz um amigo francês, acabou “Micron”.
Há na atitude dos europeus muitos ensinamentos. Usaram a inteligência para seduzir Trump, cujo poder pode desequilibrar a segurança da Europa. Em vez de ficar xingando e se isolando, preferiram enfrentar a realidade como ela é. Podem não ter ganho tudo o que gostariam, mas deixaram Washington certos de que as portas estão abertas.
Como ensinou Beremiz Samir de Malba Tahan, muitas vezes você é obrigado a dar um camelo para fechar as contas, mas se você usar a cabeça pode dobrar seu patrimônio e acabar com dois camelos.
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