Cabeças a prêmio são uma tradição. Uma das mais valiosas é a de Nicolás Maduro, depois que Donald Trump dobrou a recompensa por ela: vale agora US$ 50 milhões, o dobro do prometido pela de Osama Bin Laden, arquiteto e comandante do ataque de 11 de setembro de 2001, quando as Torres Gêmeas foram postas abaixo em Nova York e 2.977 pessoas morreram, a maioria sem entender o que acontecia.
O ditador da Venezuela é o inimigo público número 1 dos EUA. As acusações vieram numa escala crescente. Ditadura, violação de direitos humanos, até chegar no narcoestado. Maduro é acusado de liderar um cartel de tráfico de drogas, o Cartel de Los Soles, e de ter transformado a Venezuela numa potência narco responsável por 25% da cocaína vendida no mundo. São inúmeras as acusações, inclusive de ligações com a gangue venezuelana Trem de Aragua e os mexicanos do Cartel de Sinaloa.
Os EUA consideram o tráfico de drogas uma arma silenciosa de destruição, pela qual usuários são manipulados, se tornam párias ou acabam morrendo de overdose. Entre as drogas mais combatidas pelas autoridades norte-americanas está o fentanil, um opiáceo sintético, analgésico potente e altamente viciante, que pode matar se usado em excesso. Os traficantes têm misturado o fentanil à cocaína e heroína, potencializando ainda mais os efeitos e a letalidade.
Passados 12 anos da morte de Hugo Chávez, os EUA não conseguiram tirar Maduro do poder. Em maio de 2020, houve uma tentativa de invasão marítima devidamente rechaçada. No dia 14 deste mês, o secretário de Estado de Trump, Marco Rubio, anunciou o envio de tropas para o Sul do Caribe. A justificativa são operações contra traficantes, incluindo o Cartel de Los Soles. Até agora, não há provas concretas contra Maduro, como assinala um documento do NIC (Conselho Nacional de Inteligência) publicado em 7 de maio pela agência de notícias Associated Press.
Maduro não é e nunca foi um inocente. Mas o documento da AP indica que os métodos para tirá-lo do poder se aproximam muito daqueles usados anos atrás para apear Saddam Hussein do comando do Iraque. Naquela época, Saddam era acusado de estocar armas de destruição em massa, nunca encontradas e exibidas ao distinto público.
Há mais de século, cocaína é meio de vida nas regiões cocaleras da América do Sul. No início dos anos 1920, era vendida livremente no Brasil e no resto do mundo, usada como remédio ou mesmo para recreação. Depois que o Brasil aderiu a tratados internacionais, como a Convenção Internacional do Ópio de Haia, passou a ser vendida com receita médica nas farmácias até Getúlio Vargas baixar o decreto-lei 891 de 1938, proibindo e criminalizando o uso e a venda. Nos EUA, iniciativas proibindo o uso recreativo começaram nos anos 1920, mas só em 1970 a cocaína entrou para a lista das substâncias controladas (Controlled Substances Act) e seu uso criminalizado e proibido nacionalmente.
Talvez pela demora em entender o tamanho do estrago causado pela cocaína e outras drogas pesadas, os EUA viraram o maior mercado consumidor. No auge dos movimentos de contestação dos anos 1960, ninguém foi preso por fumar maconha ou cheirar pó, indicando uma demanda que, mesmo com a proibição, cresceria fortemente nos anos seguintes. O alerta veio, como no caso do fentanil, quando o Estado se deu conta do estrago social registrado nas estatísticas do setor de saúde.
Perseguir Maduro sob o argumento de que ele lidera um narcoestado, pode até fazer sentido, mas não é a principal causa. O que move os EUA são as ligações do governo venezuelano com os inimigos declarados como Irã, Hezbollah, Hamas, houtis, talibãs, Estado Islâmico, Cuba e todos os governos ou grupos armados que lideram uma guerrilha mundial contra os norte-americanos, Israel e, em muitos casos, a União Europeia.
Há informes produzidos pela inteligência dos EUA mostrando que Maduro ajudou financeiramente grupos terroristas como Hezbollah e Hamas. São essas ligações o gatilho para medidas mais duras. O problema é que, diferentemente do passado recente, agora a Venezuela tem acordos comerciais com a China e está armada até os dentes com material bélico de 1ª fornecido pelos russos. As armas impediram até agora a retirada de Maduro do poder e, por isso, a necessidade de uma demonstração de força com tropas e exercícios militares no Sul do Caribe.
Trump tem deixado claro que não medirá esforços para enquadrar os governos de esquerda sul-americanos. Tem cultivado um estresse permanente com Lula, o colombiano Gustavo Petro, o nicaraguense Daniel Ortega e, claro, os cubanos. Poupa o chileno Gabriel Boric e o uruguaio Yamandu Orsi, vistos pelos norte-americanos como representantes de uma esquerda menos radical.
Ao dobrar a aposta e oferecer US$ 50 milhões pela “cabeça” de Maduro, Trump mostra o quanto está preocupado em recuperar a hegemonia na América Latina. Ele iniciou uma ação conhecida no jargão militar como movimento em pinça. Pretende ir cercando e sufocando o adversário a partir de 2 ou mais flancos e, ao mesmo tempo, convergindo sobre ele. No caso de Maduro, os flancos são o narcoestado e o terrorismo.
O problema é que Donald Trump muitas vezes se deixa dominar pela ansiedade e nunca é demais lembrar que Sun Tzu, no seu clássico “A Arte da Guerra”, ensina que não se deve encurralar totalmente o inimigo e deixá-lo sem saída. Na falta de uma rota de fuga, pode desesperar e partir para o tudo ou nada.
Naquele dia, a caixa foi colocada sobre a mesa de jacarandá e Julio de Castilhos tapou o nariz com um lenço quando romperam o lacre, a cabeça de Gumercindo Saraiva retirada e um cheiro horrível inundou o ambiente. Fora cortada a facão depois de sua morte, salgada e embebida em álcool para evitar decomposição. Veio enrolada num pano, os olhos semicerrados, barba e bigodes úmidos. O corpo de Gumercindo foi enterrado em Santa Vitória do Palmar, conta o historiador Tabajara Ruas, enquanto sua cabeça, depois de exibida em praça pública, perdeu-se.
Nem sempre acabar com os adversários significa uma grande vitória. Castilho emparedou os inimigos e impôs seu poder. Sem saída, seguiram brigando por mais 30 anos até desembocar na Revolução de 1923, a qual terminaria com o acordo de Pedras Altas, a ascensão de Assis Brasil e a derrocada de Borges de Medeiros, herdeiro político do castilhismo. O mito Gumercindo segue vivo 131 anos depois da degola.
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