Por Marlos Porto*
Para Bertrand Russell, a linguagem não apenas expressa pensamentos, mas os torna possíveis, estruturando ideias que, sem ela, poderiam permanecer indefinidas ou rudimentares. Aplicando essa visão ao contexto jurídico e político, a existência de uma minuta, borrão ou rascunho, seja de um decreto ou de qualquer outro documento formal, deve ser vista como mero instrumento auxiliar do pensamento – cogitação, portanto.
Assim, não seria sequer “ato preparatório” de um suposto golpe, pois enquanto não houver comprovação de que determinado rascunho é uma versão definitiva, pendente apenas do lançamento de uma assinatura ou outro sinal inequívoco de que é a expressão acabada de uma vontade manifesta, não podemos superar a fase da cogitação, no “iter criminis”. Afinal, não vivemos na distopia de “Minority Report”, para podermos “ler” as mentes de quem quer que seja.
Leia maisAssim como escritores reformulam suas obras inúmeras vezes antes da versão final, ajustando, revisando e até descartando trechos inteiros, a produção de um rascunho político serve para aperfeiçoar uma ideia complexa antes de qualquer decisão definitiva. Em temas sensíveis, como um eventual decreto de estado de defesa ou estado de sítio, a reflexão aprofundada, com apoio de assessores e especialistas, é não apenas legítima, mas necessária.
Julgar alguém com base em uma minuta, um rascunho ou um borrão – versão transitória, imperfeita e efêmera de uma ideia em gestação – que poderia ter sido descartado ou reformulado, sem que tenha havido qualquer passo concreto para sua implementação, é ignorar a função essencial do pensamento estruturado na tomada de decisões. Afinal, rascunhos existem justamente para evitar decisões precipitadas, permitindo que dúvidas sejam sanadas e imperfeições corrigidas antes de qualquer formalização.
Jamais deveríamos confundir essa questão com outra, essa sim, bastante grave: a suposta tentativa dos “kids pretos” de cometer atentados contra as vidas do presidente e vice-presidente eleitos e de ministro do STF. Não há conexão entre preparar um crime dessa natureza e cogitar um decreto de estado de defesa ou de sítio, previstos na Constituição.
OBS.: Na imagem, cena com Samantha Morton e Tom Cruise, do filme “Minority Report” (2002), de Steven Spielberg.
*Bacharel em Direito
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