Por Romualda Mirdes de Figueiroa Vieira*
No dia 26 de julho de 2025, imagens de um espancamento dentro de um elevador em Natal (RN) chocaram o país. A vítima, Juliana Garcia dos Santos, de 35 anos, foi brutalmente agredida com mais de 60 socos pelo então namorado, Igor Eduardo Pereira Cabral, ex-jogador de basquete. O episódio, filmado pelas câmeras de segurança do prédio, escancarou não apenas a ferocidade da violência doméstica no Brasil, mas também a urgência de uma resposta articulada – política, institucional e educacional – frente ao feminicídio e às violências de gênero.
Juliana sofreu múltiplas fraturas no rosto e no maxilar, permanecendo internada e necessitando de cirurgia reconstrutiva. O agressor foi contido por moradores após a intervenção do segurança do prédio, que acompanhava as imagens em tempo real. Preso em flagrante, teve a prisão preventiva decretada e responde por tentativa de feminicídio. A justificativa do agressor, que alegou “surto claustrofóbico”, não convenceu as autoridades, e o caso é investigado pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM).
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A violência sofrida por Juliana mobilizou parlamentares do Rio Grande do Norte e figuras públicas, mas a indignação social, por mais necessária, não é suficiente. O caso de Natal é mais do que um evento isolado: ele é a face visível de uma estrutura de violência profundamente enraizada na cultura brasileira, onde o machismo, o racismo e o patriarcado se entrelaçam para manter mulheres, sobretudo as negras, em situação de vulnerabilidade extrema.
A violência contra a mulher no Brasil é uma epidemia. Em 2023, mais de 3.900 mulheres foram assassinadas, sendo cerca de 70% delas negras. A maioria dos casos ocorre dentro de casa e é praticada por pessoas conhecidas ou íntimas da vítima. A tragédia se repete, muitas vezes silenciosamente, até que imagens chocantes ou mortes irreversíveis levem o tema ao debate público.
No entanto, o que choca nas câmeras de segurança é apenas o desfecho brutal de violências que se manifestam, todos os dias, em pequenas práticas do cotidiano: na naturalização do controle sobre o corpo feminino, na romantização dos ciúmes, na desigualdade de gênero nas tarefas domésticas desde a infância, nas agressões verbais disfarçadas de “brincadeira” ou de “piada inofensiva”. É nesse terreno fértil que florescem as violências mais graves, que se tornam feminicídios anunciados.
Diante desse contexto, qual é o papel da escola diante da violência contra a mulher?
A escola não pode continuar se omitindo. Em nome de uma suposta neutralidade, muitas instituições de ensino ainda silenciam diante da violência de gênero, evitando tratar temas como feminicídio, estupro, violência doméstica, racismo estrutural e cultura do estupro. Essa omissão, no entanto, tem consequências. Ela contribui para perpetuar um ciclo de violência ao não formar sujeitos capazes de questionar as estruturas opressoras.
A escola é um espaço estratégico de prevenção. Para muitas meninas, é o único lugar onde elas podem ser vistas, ouvidas e protegidas. Isso só é possível se os profissionais da educação estiverem preparados para reconhecer sinais de violência, escutar sem julgamento e encaminhar os casos com responsabilidade. Não se trata de transformar o ambiente escolar em um espaço policialesco, mas de construir um território de cuidado, consciência e justiça.
É urgente capacitar docentes para lidar com os diferentes tipos de violência previstos na Lei Maria da Penha, discutir sexualidade, relações de gênero, racismo estrutural e direitos humanos. Não se trata de doutrinação, como argumentam setores conservadores, mas de compromisso com a vida e com os direitos básicos das crianças, jovens e mulheres.
Projetos interdisciplinares, rodas de conversa, produções artísticas, campanhas educativas, exibição de documentários e construção de protocolos de acolhimento são caminhos concretos. A equidade de gênero deve ser um eixo transversal do currículo e da prática pedagógica. É por meio de uma educação crítica que se formam sujeitos capazes de romper com ciclos de opressão e construir relações mais justas.
Escolher um lado: o silêncio que mata ou a palavra que liberta
Enquanto a escola silenciar, muitas meninas continuarão sendo violentadas no fim de semana e voltarão à sala de aula com um sorriso forçado. Muitos meninos continuarão reproduzindo o machismo que aprenderam em casa. Muitas professoras continuarão sendo assediadas ou agredidas sem o devido apoio institucional. O silêncio educacional é também uma forma de violência.
A educação tem o poder de salvar vidas, mas apenas se for politizada, sensível às questões de gênero e comprometida com a justiça social. Não é mais possível dizer que esse tema “não é da conta da escola”. É sim. Porque toda vez que uma mulher é violentada, o Estado falhou. E a escola, como parte desse Estado, precisa decidir de que lado está.
O caso do elevador em Natal não é uma exceção, é mais um alerta. Um espelho do que acontece diariamente em tantos lares brasileiros. Ele nos convoca a romper com a normalização da violência e exige das instituições, especialmente da escola, um posicionamento claro.
É preciso ir além da indignação momentânea. É hora de responsabilização, formação docente, proteção real e enfrentamento contínuo. A educação não pode ser cúmplice do silêncio. Ela deve ser aliada da transformação, ou continuará sendo, tragicamente, cúmplice da violência.
*Professora em Caruaru e Santa Cruz do Capibaribe
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