“As rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubaram de ti”. Garoto, sem a mínima noção de quem se tratava, ouvi muito meu pai Gastão Cerquinha cantar, bem baixinho, em tom saudoso, o velho Cartola, um dos maiores gênios do samba brasileiro. Os maiores gênios são aqueles que conseguem fazer o simples com perfeição e poesia.
Cartola era isso para o meu pai, que sabia de cor e salteado alguns dos seus maiores sucessos, como “As rosas não falam”, “Preciso me encontrar”, “Alvorada” e “O mundo é um moinho”. Nesta mais que célebre canção dor-de-cotovelo, como eram suas composições, Angenor de Oliveira, ou simplesmente Cartola, o carioca que se confunde com a história da escola Mangueira, falou das incompreensões do amor.
“Ainda é cedo, amor/ Mal começaste a conhecer a vida/ Já anuncias a hora da partida/ Sem saber mesmo o rumo que irás tomar/ Presta atenção, querida/ Embora eu saiba que estás resolvida/ Em cada esquina cai um pouco tua vida/ Em pouco tempo não serás mais o que és/ Ouça meu bem, amor/ Preste atenção, o mundo é um moinho/ Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho/ Vai reduzir as ilusões a pó”.
Leia maisQue genialidade! Eu ainda nem tinha começado a conhecer a vida e, mesmo que não anunciasse a hora de partida, me sentia sem rumo, como imagino papai também, fã número um de Cartola. Conforme Cartola quis nos ensinar neste samba-canção, as expectativas do mundo adoecem nossa alma e em cada esquina cai um pouco a nossa vida. Não é mesmo?
Os versos de Cartola serviram como uma luva à urgência que ele, como grande poeta, sentia naquele momento. E, como se soubesse exatamente a necessidade do seu público que sofria com as suas canções, ainda dizia: “Ouça-me bem, amor”. E muitos ouviram, choraram e sofreram, como sofrem até hoje ao ouvir suas canções que retratam suas desilusões com os amores não correspondidos.
Depois de escutar “O Mundo é um moinho”, impossível não derramar uma lágrima com os versos de “Preciso me encontrar”. O título já é bem sugestivo. Ouvir esse dedilhado harmonioso e a voz melosa de Cartola clamando por viver, por nascer e por ver correrem as águas do rio, é preciso, mais do que nunca, ter pressa para viver.
Cartola nasceu no Catete, no Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 1908 e, apesar dos pesares, queixava-se às rosas, mas sabia que o sol ainda nasceria e cantava: “A sorrir eu pretendo levar a vida/ Pois chorando eu vi a mocidade/ Perdida”. Foi um menino pobre. Desde muito novo, manteve contato com a arte, com seus familiares, que festejavam o sexto dia do ano fantasiados pelas ruas do Rio de Janeiro, nas festividades do Dia de Reis.
O apelido com o qual tornou-se conhecido só veio anos depois, quando ele, para se sustentar, passou a trabalhar como pedreiro, na construção civil, período em que usava um chapéu-coco, para evitar que o cimento caísse no cabelo, o que deu origem ao apelido. Na infância, conheceu a música e o samba, aprendendo violão com o pai.
Com dificuldades financeiras, sua numerosa família foi obrigada a mudar para o Morro da Mangueira, a nascente favela, onde fez amizade com Carlos Cachaça e outros bambas, além de se iniciar no mundo da boêmia, da malandragem e do samba. Após a morte de sua mãe abandonou os estudos — terminou apenas o primário.
No bairro Laranjeiras, entrou em contato com os ranchos carnavalescos “União da Aliança” e “Arrepiados” — neste último tocava cavaquinho (instrumento recebido do pai aos oito/nove anos), o que também fazia nos desfiles do Dia de Reis, em que suas irmãs saíam em grupos de “pastorinhas”.
Era tão entusiasmado pelo “Arrepiados” que, mais tarde, ao participar da fundação da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, sugeriu que as cores deste rancho — o verde e o rosa — fossem as mesmas da nascente agremiação, que seria um símbolo dos mais reverenciados no mundo do samba.
Junto com amigos sambistas do morro, Cartola criou o Bloco dos Arengueiros, cujo núcleo em 1928 fundou a Estação Primeira de Mangueira. Ele compôs também o primeiro samba para a escola de samba, “Chega de Demanda”. Cartola teve inúmeros parceiros de composição e de performances, dentre eles, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Carlos Cachaça e Clementina de Jesus.
Além disso, teve suas músicas gravadas e regravadas por grandes nomes da música popular brasileira, como Beth Carvalho, Cazuza, Maria Bethânia e Paulinho da Viola, a quem chegou a dizer, de viva voz, que seria o seu grande herdeiro e sucessor. “Paulinho canta como eu canto, parece ser o filho musical que não tive”, disse numa entrevista à revista Veja.
Cartola tinha apenas 17 anos quando sua mãe morreu. Pouco depois, após conflitos crescentes com o pai, inimigo da malandragem, acabou expulso de casa. Levou então algum tempo uma vida de vadio, bebendo e namorando, frequentando zonas de prostituição e contraindo doenças venéreas, perambulando pelas noites e dormindo em trens de subúrbio.
Esses hábitos o levaram a se enfraquecer fisicamente, adoecido e mal alimentado, na cama de um pequeno barraco. Uma vizinha chamada Deolinda, sete anos mais velha, casada e com uma filha de dois anos – passou a cuidar e a gostar dele e, assim, os dois acabaram se envolvendo romanticamente.
Tinha na época apenas 18 anos e morava sozinho, decidiram então viver juntos e Deolinda deixou o marido, levando a filha, que o compositor criaria como sua. Sob seu teto e de Deolinda, Noel Rosa foi se abrigar algumas vezes, à procura de um refúgio tranquilo. Cartola exercia a atividade de pedreiro apenas esporadicamente, preferindo assumir o ofício de compositor e violonista nos bares e tendas locais.
À época, já se firmava como um dos maiores criadores do morro, ao lado do grande amigo Carlos Cachaça e Gradim. No início da década de 1930, Cartola se tornou conhecido fora da Mangueira, quando foi procurado por Mário Reis, através de um estafeta chamado Clóvis Miguelão, que subira o morro para comprar uma música. O sambista vendeu os direitos de gravação do samba “Que Infeliz Sorte”, que acabou sendo lançado por Francisco Alves, pois não se adaptava à voz de Mário Reis.
Assinava então Agenor de Oliveira. Vendeu outros sambas a Francisco Alves, maior ídolo da música brasileira na época, cedendo apenas os direitos sobre a vendagem de discos. Neste comércio – que serviu para projetá-lo entre os sambistas na cidade –, Cartola conservava a autoria e não dava parceria a ninguém.
Em 1932, Francisco Alves e Mário Reis gravaram outro samba seu, “Perdão, Meu Bem”. Também remonta àquela época a amizade e a parceria que Cartola estabeleceu com Noel Rosa. Com o “poeta de Vila Isabel”, compôs “Tenho Um Novo Amor”, interpretada por Carmen Miranda, “Não Faz, Amor” e “Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz”, interpretadas por Francisco Alves.
Ainda naquele ano, Sílvio Caldas lançou “Na Floresta”, de autoria de Cartola, do próprio Sílvio e ainda a primeira composição em parceria com Carlos Cachaça. Também em 1932, a Mangueira foi campeã do desfile promovido pelo jornal O Mundo Esportivo com a música “Pudesse Meu Ideal”, a sua primeira parceria com Carlos Cachaça.
Em 1957, Cartola trabalhava como vigia e lavador dos carros dos moradores de um edifício em Ipanema. Nessa função, foi identificado em uma madrugada pelo jornalista Sérgio Porto (conhecido como Stanislaw Ponte Preta), sobrinho do crítico musical Lúcio Rangel, que havia dado ao sambista, anos antes, o apelido de “Divino Cartola”.
Ao ver o compositor magro e maltrapilho em um macacão molhado, Stanislaw decidiu ajudá-lo, começando por divulgar a redescoberta, que fizera, do sambista. Àquela altura, Cartola era dado como desaparecido ou mesmo morto por muitos de seus conhecidos e admiradores.
Cartola vivia um período difícil em sua vida. Sem mais a atenção de Deolinda e o prestígio no morro da Mangueira, o sambista morava em uma favela no bairro do Caju, com uma mulher chamada Donária. Ele conseguiu trabalhos modestos, como o de lavador de carros e vigia de edifícios. Mas a entrada em cena de uma nova — e definitiva — mulher em sua vida alterou o seu destino.
Quando Eusébia Silva do Nascimento, mais conhecida como Zica, o encontrou, o sambista estava em um estado lastimável, entregue à bebida, desdentado e sobrevivendo de biscates — sem contar ainda um problema no nariz, que tinha se tornado demasiadamente grande, devido a uma afecção denominada rinofima. Apesar disso, Zica, antiga admiradora de Cartola, se apaixonou por ele, conquistando-o.
Zica o levou de volta ao morro da Mangueira, onde o casal se instalou em uma casa na subida do morro, perto da quadra da escola de samba e próximo da casa de Carlos Cachaça e Menina (irmã de Zica). Com Zica, Cartola viveria até o fim de seus dias, sem, no entanto, deixar filhos. Estimulado por amigos, Cartola e Zica resolveram aplicar a fórmula música-comida em um sobrado da rua da Carioca, também na zona central da cidade, em 1963.
Três dias antes de morrer, Cartola recebeu de Carlos Drummond de Andrade sua última homenagem em vida. Cartola morreu de câncer na Clínica São Carlos, localizado no bairro Botafogo, em 30 de novembro de 1980, aos 72 anos de idade. Seu corpo foi sepultado no Cemitério do Caju. Dona Zica viu o corpo do seu grande amor pela última vez, abraçada com Clara Nunes, que era amiga e uma das “queridinhas” do poeta.
Atendendo a seu pedido, no dia 1º de dezembro, data de seu funeral, Waldemiro, ritmista da Mangueira, que havia aprendido com ele a encourar seu instrumento, marcou o ritmo para o coro de “As Rosas Não Falam”, cantada por sambistas, amigos, políticos e intelectuais, presentes em sua despedida. Em seu caixão a bandeira do time do seu coração, o Fluminense.
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