Por Adilson Lira*
Este tema exige um cuidado analítico maior, pois o racismo dentro das igrejas cristãs brasileiras raramente se apresenta como um discurso aberto e oficial de superioridade racial. Ele é geralmente apresentado através de formas mais sutis, estruturais e, por vezes, justificadas por interpretações teológicas pífias e carentes de embasamento bíblico racional.
Raízes históricas do racismo nas igrejas cristãs: a igreja e a escravidão
A teologia da escravidão: A Igreja Católica, durante o período colonial e o império, foi cúmplice ativa do sistema escravista. Teólogos e clérigos utilizavam passagens bíblicas (como a “Maldição de Cam”, uma interpretação distorcida e já amplamente refutada), para legitimar e justificar a escravidão de povos africanos, argumentando que tais povos eram inferiores e amaldiçoados por Deus.
Leia maisO “branqueamento” espiritual: A catequese forçada das negras e negros escravizados tinha por objetivo não apenas converter, mas também e principalmente apagar sua identidade cultural. O tal processo de “civilização”, significava, na prática, a europeização de indígenas e negros no Brasil. A estética branca e europeia foi estabelecida como a representação do sagrado (um Jesus branco, de olhos azuis e os santos também brancos).
Atualmente o racismo se manifesta nas igrejas cristãs (católicas e evangélicas), de várias formas. O racismo contemporâneo nas igrejas cristãs pode ser dividido em três níveis:
- Racismo estrutural e estético (A invisibilidade negra)
Hegemonia da imagem de um Deus branco: A representação de Deus, Jesus, Maria e dos santos majoritariamente como figuras brancas em estátuas, vitrais e imagens é uma forma poderosa de exclusão simbólica. Passa a mensagem subliminar de que o divino é branco.
Falta de representatividade na liderança: Na igreja católica e nas igrejas evangélicas históricas (Presbiteriana, Metodista, Batista, Adventista etc.), há uma sub-representação de negras e negros nos cargos de maior hierarquia e poder (sacerdotes, padres, bispos, pastores, reverendos, apóstolos etc.). As lideranças negras assumem frequentemente funções subalternas e desempenham papéis secundários.
Teologia e liturgia eurocêntricas: O modelo de culto, a música (hinos clássicos europeus), a estrutura organizacional e a própria teologia sistemática são baseados em referenciais europeus, ignorando ou marginalizando tudo que é advindo da cultura negra.
- Racismo interpessoal e cultural (ações e falas)
Piadas e “brincadeiras” racistas: Comentários depreciativos sobre cabelo crespo, traços faciais, “irmãos de cor”, são comuns em ambientes de confraternização. É o racismo mascarado ou disfarçado de humor.
Pressão estética: A demonização de elementos da cultura negra. Mulheres negras são incentivadas a alisar os cabelos pois assim poderão ir “arrumadas para a igreja”. O simples uso de turbantes, outrora um símbolo de resistência e identidade, é por vezes visto como “coisa do candomblé”, e por isso, desencorajado.
Caso clássico do “cabelo bom” x “cabelo ruim”: Associar cabelos crespos ou “black power” com “desleixo” ou “rebeldia” é um dos exemplos mais cotidianos, cruéis e dolorosos de racismo dentro das igrejas cristãs nos tempos atuais.
Relacionamentos ou casamentos inter-raciais (jugo desigual): Embora não seja uma regra e apesar de vir perdendo espaço no meio cristão, ainda é possível encontrar resistência familiar e até comentários de determinados líderes religiosos sobre “não se colocar em jugo desigual”. É o racismo na sua mais hipócrita forma!
Relacionamentos inter-raciais ainda hoje são desencorajados nesse meio, como se pessoas cristãs brancas fossem melhores e não devessem se relacionar (namorar, casar, constituir família) com pessoas cristãs negras.
- Racismo teológico e doutrinário (A justificação religiosa)
Teologia da prosperidade e “maldição hereditária”: Algumas correntes neopentecostais distorcem ensinamentos bíblicos afirmando que a pobreza e as dificuldades são fruto de maldições hereditárias. Num país como o Brasil, onde a população negra é a mais pobre, isso é interpretado, ainda que indiretamente, como uma maldição inerente à negritude, desconsiderando séculos de opressão estrutural (social, cultural, econômica e política).
Silêncio pregado: A omissão deliberada do tema do racismo nos púlpitos. A defesa de um “evangelho puro”, que não se mistura, por exemplo, com a cultura de um povo ou mesmo com a sua “política”, serve como cortina de fumaça para não confrontar o pecado estrutural do racismo, mantendo o “status quo” de exclusão.
Movimentos de resistência e transformação
Felizmente, há fortes correntes de mudança dentro do cristianismo brasileiro quanto ao combate ao racismo:
Teologia negra: Uma corrente teológica que reinterpreta a Bíblia a partir da experiência e da luta do povo negro. Ela destaca passagens de libertação, como o Êxodo do povo de Deus do Egito, e figuras bíblicas negras, como a Rainha de Sabá, o eunuco etíope, Simão o Cireneu etc.
Pastorais e coletivos negros: A Pastoral Afro-Brasileira, na Igreja Católica e diversos coletivos de negros e negras de Igrejas Evangélicas, como o Movimento Negro Evangélico, atuam para conscientizar, formar lideranças e combater o racismo dentro de suas próprias denominações religiosas.
Também é importante destacar que a crescente participação de cantoras e cantores cristãos negros, no mercado da música gospel nacional, tem contribuído positivamente para o combate ao racismo no meio cristão.
Portanto, combater a prática do racismo dentro das igrejas cristãs não é uma agenda secundária ou simplesmente política, mas uma necessidade, uma exigência teológica que se coloca diante de qualquer comunidade que professe seguir a Jesus, o Cristo de Deus, que pregou amor ao próximo e combateu toda sorte de discriminação e preconceito ao longo do Seu ministério terreno!
Enquanto os púlpitos de nossas igrejas cristãs silenciarem sobre o tema do “racismo” e a estética branca permanecer como norma do sagrado ou do divino, a mensagem do evangelho de Cristo estará, ela mesma, segregada, enfraquecida, pois, a verdadeira fé não pode conviver com a hierarquização de raças.
A Bíblia, de onde o cristianismo extrai sua regra de fé, sua teologia, nos ensina sobre a igualdade e contra todas as espécies de discriminações e preconceitos:
“Assim sendo, não há judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vocês são um em Cristo Jesus.” (Gálatas 3:28).
Portanto, que neste 20 de novembro nós cristãos e cristãs, que representamos, segundo o último censo do IBGE, 83,6% da população do Brasil, façamos uma sincera reflexão sobre racismo, discriminação e preconceito, dentro de nossas igrejas, e nos perguntemos:
- Que espécie de cristianismo queremos?
- Que espécie de cristianismo temos praticado?
- A que Cristo seguimos?
- A que Deus servimos?
Feliz 20 de novembro, dia nacional da consciência negra, para todas e todos que, assim como Jesus, o Cristo de Deus, abominamos o racismo, essa prática espúria e anticristã, que insiste em se perpetuar no seio do cristianismo no Brasil!
Caruaru-PE, quinta-feira, 20 de novembro de 2025.
*Adilson Lira é negro; cristão evangélico, membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia; advogado, com pós-graduação em Ciência Política, Gestão Pública e Sociologia; servidor público estadual; vice-presidente do PT em Caruaru e integrante da coordenação nacional da organização social Via Trabalho
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