Por Flávio Chaves*
Garibaldi Ludwig não ofertava coisa alguma. Não vendia esperanças, tampouco prometia redenção. Era como uma prece dita ao vento, como a sombra de um corpo que já partiu. Apenas entregava ausência – e o fazia com a ternura solene de quem sabe que o vazio também precisa ser cuidado.
Não falava em consolo, porque compreendia que o consolo, às vezes, trai a dor legítima. Não acompanhava ninguém até o fim de um processo, pois cria que a alma precisa caminhar sozinha até o abismo que lhe pertence. Seu ofício era outro, imperceptível à pressa dos vivos, sutil como a poeira que dança nos feixes de luz nas manhãs silenciosas.
Leia maisGaribaldi tomava conta de livros que dormiam em bibliotecas esquecidas – aquelas onde as páginas perderam os dedos que as folheavam, e o tempo se assentava como véu sobre cada lombada. Lia devagar, com os olhos abertos como portas e a alma desarmada como quem aceita o que dói. Respirava o pó como quem inala lembranças, e assim, tornava-se parte do que repousa no esquecimento.
Sentava-se em estações onde os bancos rangem como articulações cansadas e os trilhos já não sabem para onde levam. Pegava vagões vazios, seguia em viagens sem destino, como um náufrago que encontrou no ferro sua jangada. Pela janela, via os espectros do cotidiano: rostos cansados, alegrias vencidas, paixões apagadas pelo tédio das cidades que passavam.
Vestia-se com a sobriedade dos que não precisam ser anunciados: calça de brim, camisa clara, chapéu de palha – como se ainda vivesse num tempo anterior ao ruído. Nos ombros, a poeira dos caminhos que ninguém mais pisa. Chegava como as estações do ano: sem anúncio, mas com inevitável precisão.
Não era contratado. Era pressentido.
Às vezes, aparecia num botequim esquecido no fim da cidade. Sentava-se diante de uma garrafa abandonada e tomava longos goles, densos e lentos, como quem bebe o passado com reverência. No canto da parede, uma radiola de fichas sussurrava músicas ancestrais. Garibaldi as ouvia como ladainhas de um mundo antigo, e quando uma lágrima escorria, não era tristeza: era memória. Um reconhecimento íntimo: “Sim, eu me lembro de quando tudo isso ainda doía.”
Numa prateleira empoeirada, instrumentos adormecidos – bandolins, violões, cavaquinhos, violinos. Ele nunca os tocava. Apenas os contemplava como quem vela um corpo amado, como quem escuta a música que persiste mesmo após o último acorde.
Em certo verão, ficou três dias no banco de trás de um cinema desativado. À noite, diziam, ouvia-se o estalar de pipocas imaginárias, um riso antigo preso no projetor. Noutra ocasião, passou madrugadas em vigília diante de um açude seco, fitando a superfície como se aguardasse o retorno de um barco que nunca existiu, mas que, de algum modo, ainda precisava chegar.
Entrava em casas à venda havia décadas. Sentava-se na cadeira de balanço e lia um livro que não fechava. Ao cair da noite, saía em silêncio, deixando um botão de rosa seca sobre o batente – como um selo sagrado, como quem diz: “aqui, um amor passou.”
Nos enterros de desconhecidos, Garibaldi era presença muda. Sentava-se à margem dos enlutados, como quem escuta os murmúrios do mundo invisível. Ninguém o convidava. Ninguém o impedia. Era como um farol encoberto pela névoa: orientava sem ser visto.
Com o tempo, tornou-se lenda. Chamavam-no de “o guardião das ausências”. As crianças o seguiam de longe, como quem vê um alquimista de silêncios. Os velhos o reverenciavam – reconheciam nele a linhagem secreta dos que sabem perder sem se despedaçar.
Nunca aceitou dinheiro. Quando alguém, num gesto de gratidão, insistia, ele sorria com ternura e dizia:
— Não cobro por lembrar o que foi amado.
Garibaldi ensinava sem palavras que a ausência não é o oposto da presença – é sua continuação invisível.
Certa vez, uma senhora lhe perguntou:
— Por que o senhor faz isso?
Ele tirou o chapéu, fitou o chão de terra batida e respondeu com a serenidade de quem já não pertence a este século.
— Porque alguém precisa ficar onde o tempo passou.
E foi só. Nunca mais voltou.
Dizem que hoje ele habita ruínas, igrejas esvaziadas, galpões tomados pelo mato. Não para restaurá-los, mas para impedir que o esquecimento seja total. Para que, por um breve instante, o mundo ainda se lembre de que ali, um dia, algo pulsou.
Em tempos de tanto ruído, Garibaldi Ludwig era a lembrança viva de que até o vazio merece companhia.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras.
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