Por Jorge Henrique Cartaxo e Lenora Barbo
Especial para o Correio Braziliense
O Graf Hindenburg — dirigível mais moderno do que o já tradicional Zeppelin — fazia a rota Frankfurt-Rio, sem escala, em três dias. Impactante, a nave, quase cilíndrica, exibia, de cada lado da cauda, uma suástica preta sobre um fundo branco. Era uma das faces do nazismo de Joseph Goebbels, cruzando o atlântico. Foi num desses voos que Le Corbusier desembarcou no Rio, em 1936. O já famoso arquiteto franco-suíço fora convidado pelo arquiteto Lucio Costa para integrar a equipe que elaborou o projeto do futuro Ministério da Educação e Saúde, comandado pelo ministro Gustavo Capanema. Tinha início a, ainda hoje polêmica, consolidação da arquitetura modernista no Brasil.
Charles-Édouard Jeanneret-Gris — nome de batismo de Le Corbusier — nasceu, em 6 de outubro de 1887, na indústria relojeira de La Chaux-de-Fonds, na comuna suíça situada na Cordilheira do Jura. Em 1902, sob a orientação do pintor e arquiteto suíço Charles L’Éplattenier, Jeanneret começou a estudar artes decorativas. Nesse momento ele se interessa também pela arquitetura. “Étude sur le mouvement d’art décoratif em Allemangne”, é o primeiro trabalho publicado de Jeannert. “A Revolução levou a uma reversão completa. Homens no poder — ou tendo a possibilidade de subir ao poder — tiveram uma educação incompleta, tendo ascendido os plebeus ignorantes”, disse o futuro modernista ao analisar, em seu texto, os efeitos da Revolução Francesa nas artes decorativas do império, que teriam entrado em declínio vencidas pelo gosto burguês.
Leia maisEm 1917, já em Paris, depois de ter sido expulso pela elite judaica de La Chaux-de-Fonds, acusado de não cumprir contratos profissionais, Le Corbusier — agora com o nome artístico — conhece o pintor francês Amédée Ozenfant. No ano seguinte publicam o manifesto de fundação do purismo na arquitetura: “Aprés le cubisme”. Naquela reflexão ele traz as primeiras percepções do impacto das novas tecnologias na arquitetura. Pontes, barragens, fábricas, tudo em grandes dimensões, sinalizando o advento de uma nova Era moderna.
Curiosamente, o texto traz uma conexão com a clássica “grandeza romana”. Em outubro de 1920, agora em companhia, também, do poeta belga Paul Dermée, o trio lança a revista “L’Espirit Nouveau” (1920/25). Um espaço editorial para o embrionário movimento de vanguarda e as reflexões sobre o purismo na arquitetura. “Roma se ocupava de conquistar o universo e gerencia-lo. Estratégia, suprimentos, legislação: espírito de ordem[…]. A ordem romana é uma ordem simples e categórica […]. Eles tinham desejos imensos de dominação, de organização”, escreveu Le Corbusier, na 14º edição da revista, sublinhando a disciplina e a ordem, que o encantavam como fundamentos da antiga civilização romana. Nesse período, Le Corbusier e o seu primo Pierre Jeanneret, projetam a Ville La Roche (onde hoje funciona a Fundação Le Corbusier), em Paris, para o banqueiro suíço Raoul La Roche.
Foi também nesse início dos anos 20, que ele lançou o seu clássico “Ver une Achiteture” rapidamente traduzido na Europa e nos Estados Unidos. Havia naquela ocasião, certamente uma consequência das preocupações com a salubridade e a higiene urbanas evidentes no século 19, como ilustra a grande e clássica reforma de Paris do Barão Haussmann, a construção de espaços urbanos higiênicos, ordenados e funcionais. Era uma proposta para uma reflexão e um refazimento da forma de se organizar, trabalhar e viver a luz da história e das “tradições”.
Em 1927, os líderes do primeiro grupo fascista francês, “Le Faisceau”, encantaram-se com as ideias do arquiteto franco-suíço expressas no seu “Plan Voisin”. George Valois, no seu artigo “La Nouvelle Etape De Fascisme”, disse que ele expressava o pensamento profundo do fascismo com a sua cidade moderna. Corbusier, durante quase vinte anos, teve uma participação ativa no “Le Faisceau”, defendendo um estado forte, intervencionista e autoritário. Eram evidentes suas críticas à democracia moderna que nasce com a Revolução Francesa.
Convidado por Paulo Prado — rico e um dos patrocinadores da Semana de Arte Moderna de 1922 — Le Corbusier desembarca em Santos, na sua primeira visita ao Brasil, no dia 17 de novembro de 1929. Entre São Paulo e o Rio de Janeiro, ele faz uma série de palestras, antecipando o que apresentaria na Carta de Atenas de 1933. No IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), realizado a bordo do navio “Patris II”, foram apresentadas as teses básicas do urbanismo moderno: habitação, trabalho, lazer e circulação; as áreas verdes e de lazer deveriam estar distantes do setor industrial; o patrimônio e a memória arquitetônica deveriam ser preservados; o crescimento urbano teria que ser observado e administrado.
Assinaram o documento, além de Corbusier, os arquitetos Wiliam Morris e Tony Garneier. As questões ideológicas, naquele momento, não tinham ainda a densidade e tensões que o ocidente passaria a perceber e se posicionar com o início da II Guerra Mundial, em 1939. Portanto, as teses sobre o urbanismo e a arquitetura modernista, que se destacariam depois de 1945, pelo menos de uma forma direta, não se viam prejudicadas pelas posições ideológicas manifestas.
A fama, o reconhecimento e a notoriedade não afastaram Le Corbusier do fascismo italiano e do colaboracionismo francês com o nazismo. “A nova civilização da máquina nasceu há cem anos. As raízes são tão profundas que uma arquitetura e um planejamento urbano resplandecentes e magníficos…podem florescer sob o sinal milagroso da decisão, esse gesto que depende apenas da autoridade. A autoridade, essa força paterna”, disse o arquiteto ao encerrar uma palestra, em Roma, no ano de 1934.
Em fevereiro daquele mesmo ano, agora em Paris, ao saber de uma grande manifestação da extrema direita contra o parlamentarismo, ele observou: “o despertar da limpeza”. Às vésperas da guerra, em 1937, ele escreveu que almejava “uma sociedade ordenada, viril, higiênica, racional […] classifique as populações urbanas, ordene, elimine aqueles que são inúteis na cidade”. Em junho de 1940, quando o Marechal Pétain assinou um armistício com a Alemanha, entregando todos os judeus aos nazistas, Le Corbusier, em uma carta à sua mãe, escreveu: “Vitória milagrosa. Se tivéssemos ganhado, a podridão teria triunfado e nada de limpo jamais poderia pretender viver”.
“Le Corbusier tinha alguns notáveis rivais, mas nenhum deles teve a mesma importância na revolução da arquitetura, porque nenhum deles suportou insultos tão pacientemente e por tanto tempo”, disse André Malraux, herói e símbolo da resistência francesa, na cerimônia fúnebre do festejado urbanista, no átrio do Louvre, no dia 1 de setembro de 1965. Naquele momento, as feridas abertas pelos colaboracionistas ainda estavam abertas. O esquecimento era uma prudência, sobretudo quando se tratava de um símbolo da cultura, de certo modo, universal.
O relatório final e conclusivo da Comissão de Localização da Nova Capital Federal, presidida pelo Marechal José Pessoa, com minucioso e amplo detalhamento sobre todos os aspectos e procedimentos necessários para a mudança e edificação da cidade, apresentado em 1955, merece, pelo menos, dois destaques: a identificação dos cinco sítios possíveis para localização do núcleo urbano principal da cidade; e o primeiro Plano Piloto da capital que, pela sugestão de Pessoa, teria o nome de Vera Cruz.
O primeiro anteprojeto para a Futura Capital, é importante destacar, com as inspirações modernistas de Le Corbusier, foi apresentado pela primeira urbanista brasileira, Carmem Portinho, em 1939, como o seu trabalho de tese. Inspirada nos trabalhos da Comissão Cruls e as referências de Glaziou sobre o local onde seria o Lago Paranoá, sem um trabalho de campo, ela apresentou uma espécie de Ville Radieuse. Por coincidência, ou não, o projeto apresentado pelos engenheiros Raul Penna Firme, Roberto Lacombe e José Oliveira Reis, da equipe do Marechal Pessoa, traz os mesmos princípios do modernismo. Reis, Lacombe e Firme sugeriram a vinda de Le Corbusier para aconselhar a equipe brasileira. O Marechal Pessoa não acolheu a sugestão. Para ele, aquele era um desafio para os brasileiros!
A Comissão, seguindo as orientações do Relatório Belcher (fotos e analises), identificou, em cores para evitar a especulação imobiliária, os Sítios Azul, na região de Anápolis; o Amarelo, em Silvânia; o Verde, em Planaltina; o Castanho, onde é hoje o Plano Piloto; e o Vermelho, a 65 quilômetros de Unaí. Cada uma das regiões escolhidas foi devidamente analisada, considerando as adequabilidades já elencadas. Uma combinação se destacava: o Sítio devia ter uma altitude de cerca de 1.000m, em um terreno sem grandes ondulações, paisagem variada sem monotonia.
“As encostas seriam de pouca declividade, não excedendo a 8%, assim permitindo construir sobre elas sem dificuldades. Deve haver, também, uma área localizada em posição dominante, que possa ser aproveitada, de forma monumental, para o núcleo governamental da cidade”. Venceu o Sítio Castanho — onde fica o Plano Piloto — que somado ao Sítio Verde, constituem o Distrito Federal.
*O jornalista Jorge Henrique Cartaxo é diretor de Relações Institucionais do IHG-DF | A arquiteta Lenora Barbo é diretora do Centro de Documentação do IHG-DF
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