Por Inácio Feitosa*
A decisão do Superior Tribunal de Justiça no Tema Repetitivo 1094, que permite que bacharéis assumam cargos previstos em lei como técnicos, reacendeu um debate que nunca foi trivial para os municípios. O STJ entendeu que, quando o edital exige curso técnico de nível médio, a graduação na mesma área profissional supre esse requisito.
Porém, permanece a pergunta que o próprio Tribunal não enfrentou: quando um enfermeiro bacharelado executará atividades típicas de um técnico em enfermagem? A resposta prática é evidente, mas não foi considerada no julgamento. É justamente essa desconexão entre o entendimento judicial e a realidade municipal que cria insegurança para os prefeitos.
Leia maisA Constituição Federal, nos artigos 18 e 30, assegura autonomia aos municípios para definir cargos, atribuições e escolaridade. Essa definição é resultado de estudos técnicos elaborados pelo Executivo, com participação do secretariado, avaliações das demandas reais da administração e contribuições de entidades representativas, como conselhos profissionais. Após esse processo, o projeto segue para a Câmara Municipal, onde ocorre debate político e técnico antes da aprovação. Quando o STJ determina que um diploma superior substitui automaticamente a formação técnica estabelecida em lei municipal, desconsidera toda essa construção democrática e técnica. A formação técnica prevista em lei não é uma formalidade, mas uma escolha funcional sobre o tipo de profissional de que o município realmente precisa.
O edital do concurso também perde autoridade com essa decisão. Ele é elaborado por comissões técnicas que avaliam detalhadamente as atribuições do cargo. A comissão define a escolaridade adequada com base na natureza prática do trabalho. Ao admitir que a graduação sempre supera a formação técnica, a decisão do STJ relativiza essa análise especializada. Cursos superiores têm propósitos distintos e não necessariamente preparam o profissional para atividades operacionais. A tese do Tema 1094, portanto, fragiliza a segurança jurídica do concurso e esvazia o papel das comissões responsáveis por definir o perfil do cargo.
Os Tribunais de Contas, que atuam diretamente no controle das admissões municipais, têm apontado riscos concretos. O Tribunal de Contas de Pernambuco, em análises recentes, alertou que a aceitação automática de diploma superior em cargo técnico pode gerar desvio funcional, quebra de hierarquia e desorganização de equipes. Ressalta ainda que a remuneração deve seguir o cargo técnico, mas que o exercício de funções superiores pode responsabilizar o gestor. O Tribunal de Contas de Minas Gerais também sustenta que formação técnica e superior têm finalidades diferentes e que a escolaridade prevista na lei municipal deve ser respeitada integralmente. O Tribunal de Contas de São Paulo segue a mesma lógica. Já os Tribunais de Contas da Paraíba e do Ceará admitem a possibilidade, mas exigem comprovação de que o bacharel não exercerá atribuições próprias de nível superior. Todos esses órgãos convergem em um ponto: a equivalência não é automática e depende da realidade funcional, algo que o STJ não considerou.
A incompatibilidade prática entre as formações é clara. A Resolução COFEN 556 diferencia detalhadamente as atividades do enfermeiro e do técnico em enfermagem. A mesma diferenciação existe no CONFEA, que distingue atribuições de engenheiros e técnicos industriais, e no Conselho Federal de Química. As formações não são etapas da mesma carreira, mas formações distintas para funções distintas. Ignorar essas diferenças compromete o funcionamento das equipes e cria conflitos que a administração terá de resolver.
Nesse cenário, surge uma dúvida prática que aflige as gestões municipais. O bacharel que assume o cargo técnico recebe o salário previsto para o cargo, pois a remuneração depende da lei municipal. No entanto, se ele começa a executar atividades típicas de enfermeiro, abre-se a possibilidade de caracterização de desvio funcional, com reflexos financeiros e administrativos. Resta a pergunta: se o cargo é técnico, mas o trabalho realizado é de enfermeiro, estará o município realmente protegido ao pagar como técnico? Ou será acusado de mascarar uma necessidade real de profissionais de nível superior? Essa resposta administrativa ainda paira no ar.
Embora o Tema 1094 esteja pacificado no Judiciário, ele interfere na autonomia dos municípios, relativiza o processo legislativo local, enfraquece a autoridade das comissões de concurso e diverge do entendimento consolidado dos Tribunais de Contas. Cargos técnicos existem por razões funcionais e práticas, e não por formalidade. Ignorar isso compromete a organização da administração pública.
O STJ uniformizou a tese, mas a realidade dos municípios continua desafiadora. E por isso, mesmo respeitando a Corte, mantenho minha discordância: a decisão resolve a teoria, mas complica a prática. E, no serviço público, é sempre a prática que cobra a conta.
*Advogado, escritor e fundador do Instituto Igeduc
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