Por Áureo Cisneiros*
Houve um tempo em que ser de esquerda significava estar do lado do povo. Era estar nas greves, nas ocupações, nas portas das fábricas e nos sindicatos. Era ouvir o trabalhador, a dona de casa, o estudante da escola pública. Era suar junto, comer o mesmo pão e acreditar que dava pra mudar o mundo.
Nos anos 90, quando eu participava do movimento estudantil, a gente era desconfiado do sistema – criticava o Congresso, o STF e até o voto eletrônico. Éramos rebeldes por convicção. Mas parece que, quando a esquerda chegou ao poder, algo se perdeu pelo caminho. A utopia virou planilha, a rebeldia virou burocracia, e a crítica virou defesa cega do mesmo sistema que antes combatíamos.
Leia maisE é curioso lembrar: a própria esquerda defendia o povo armado. Não no sentido da violência gratuita, mas da autodefesa popular, do direito do cidadão se proteger de um Estado autoritário. Falava-se em autonomia das comunidades, em poder popular real, em resistência.
Hoje, esse discurso foi sequestrado pela extrema direita, enquanto a esquerda passou a pregar o desarmamento total e a confiança irrestrita no mesmo Estado que antes criticava. É uma inversão simbólica profunda – o sinal de que a rebeldia deu lugar à submissão institucional.
Hoje, vejo uma esquerda que fala bonito, mas fala sozinha. Que escreve muito, mas ouve pouco. Enquanto isso, o povo das periferias — aquele povo que sempre foi o alicerce da transformação — foi se afastando.
A esquerda se fortaleceu nos bairros nobres, nos debates acadêmicos, nos palcos culturais. Mas o povão, o trabalhador, o fiel da igreja, o cara da moto, a mulher que pega dois ônibus por dia — esses foram ficando de fora.
Talvez a esquerda tenha se apaixonado mais por suas teses do que pelo seu povo. Passamos a disputar quem tem o discurso mais correto, e esquecemos que a política é, antes de tudo, encontro e escuta. É preciso coragem para reconhecer isso — porque sem humildade, não há recomeço.
Parte da esquerda se perdeu no caminho do individualismo, falando mais de identidades do que de gente. Cada grupo passou a defender apenas a sua dor, e a política virou um espelho. Mas o povo quer mais do que reconhecimento: ele quer viver melhor, quer ver o filho comendo, quer segurança e respeito. Quando a esquerda esquece de falar disso, o povo escuta quem fala — mesmo que seja a extrema direita.
Enquanto os progressistas têm medo do sistema e se esforçam para preservá-lo, os conservadores de hoje se colocam como desafiantes do sistema — falam a língua do povo, desafiam instituições e conquistam corações que a esquerda abandonou.
E é isso que está acontecendo.Enquanto a esquerda debate termos e purezas ideológicas, a direita fala simples: “Deus, pátria e família”. Pode ser um discurso raso, mas é direto, é emocional, e, acima de tudo, fala a língua do povo. E o povo não segue quem tem mais razão — segue quem o entende.
O povo não quer ser estudado, quer ser compreendido. Quer ser ouvido, respeitado e valorizado. Quando alguém chega de coração aberto, o povo sente. É por isso que tantos seguem quem os acolhe, mesmo que não concordem com tudo. A esquerda precisa voltar a abraçar o povo — e não apenas discursar sobre ele.
A esquerda também perdeu a esperança. Antes, a gente sonhava com um país justo, com igualdade, com transformação. Hoje, o discurso virou técnico: fala-se em “gestão”, “responsabilidade fiscal”, “governabilidade”. Mas o povo quer sonho.
Quando a política para de sonhar, o povo vai buscar esperança onde encontra: na fé. E foi aí que as igrejas e o populismo conservador ocuparam o espaço que a esquerda abandonou.
E há outro problema: a esquerda ainda fala como se o mundo do trabalho fosse o das fábricas e dos metalúrgicos. Mas o Brasil mudou. Hoje o trabalhador é o entregador de aplicativo, o motorista, a diarista, o autônomo.
Gente sem sindicato, sem direitos, sem tempo — mas com a mesma vontade de viver com dignidade. Essa nova classe trabalhadora não se vê representada, e por isso se cala, se desilude ou muda de lado.
A esquerda precisa reencontrar o chão da vida real. Precisa voltar a ouvir, a sentir, a caminhar com o povo. Não é negando as causas identitárias, mas recolocando-as dentro de um projeto maior, que fale de coletividade e solidariedade. O povo quer dignidade, fé e oportunidade. E quer que alguém fale com ele — não sobre ele.
A esquerda precisa reaprender a sonhar junto, não sozinha. E sonhar junto significa olhar pro lado, segurar a mão do trabalhador, da mãe solo, do jovem negro, do pequeno comerciante e dizer: “vamos mudar isso juntos”. Porque ninguém muda o Brasil sozinho — é o povo que faz a história andar.
Ainda há tempo.
O Brasil continua sendo um país generoso, cheio de gente boa e trabalhadora. O que falta é uma esquerda que volte a sonhar grande e a caminhar de cabeça erguida ao lado do povo. Uma esquerda menos narcisista e mais humana, menos acadêmica e mais popular. O Brasil não precisa de novos messias — precisa de uma nova esperança. E essa esperança só vai nascer quando a esquerda voltar a olhar o povo nos olhos e a falar com o coração.
*Presidente do SINPOL-PE e defensor da segurança pública como direito fundamental
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