Por Luis Nassif
Às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff, Brasília se tornava o epicentro de uma movimentação intensa de lobistas. A saída da presidente, conhecida por sua rigidez ética e a ascensão de Michel Temer, mais flexível aos interesses do mercado, criaram o ambiente ideal para negociações obscuras. Foi nesse contexto que, em dezembro de 2016, se consumou um dos golpes mais silenciosos e letais contra a saúde pública e a arrecadação fiscal: a extinção do Sicobe, sistema de controle da produção de bebidas.
A decisão, tomada por Henrique Meirelles, então Ministro da Fazenda, e Jorge Rachid, Secretário da Receita Federal, abriu caminho para a proliferação de bebidas falsificadas – muitas delas com substâncias tóxicas – e para a evasão bilionária de tributos. Hoje, quase uma década depois, começam a surgir os primeiros casos de mortes diretamente ligadas ao consumo dessas bebidas adulteradas.
Leia maisO que era o Sicobe
Implantado em 2008, o Sicobe (Sistema de Controle de Produção de Bebidas) era uma tecnologia de rastreamento em tempo real. Cada fabricante era obrigado a instalar equipamentos homologados que registravam digitalmente cada garrafa ou lata produzida. Os dados eram enviados diretamente à Receita Federal.
O sistema permitia:
- Vincular produção à tributação (IPI, ICMS);
- Detectar variações suspeitas na produção;
- Rastrear insumos estratégicos (malte, açúcar, embalagens);
- Identificar bebidas falsificadas com precisão.
Era, portanto, uma ferramenta eficaz contra sonegação e adulteração – inclusive contra o uso de substâncias perigosas como o metanol. Mas, por conta de seu custo, era também um fator de concentração de mercado, já que inacessível para empresas menores.
O lobby contra o controle
Os grandes fabricantes alegavam que o sistema gerava custos operacionais elevados e criava dependência da empresa suíça SICPA, responsável pelos equipamentos. Jorge Rachid comprou esse discurso e defendeu que a Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) seria suficiente para rastrear a produção.
Por outro lado, a necessidade de adquirir o equipamento acabava restringindo o mercado para as pequenas empresas. Acabava sendo um fator de concentração.
O argumento oficial era que o “controle digital moderno”, baseado em Big Data tributário, substituiria os sensores físicos. Mas havia um problema evidente: o novo sistema dependia exclusivamente das informações declaradas pelas empresas – abrindo espaço para subdeclarações e fraudes.
O desmonte e suas consequências
O Tribunal de Contas da União chegou a questionar a contratação da SICPA sem licitação. Embora o problema fosse corrigível, serviu de pretexto para a extinção do Sicobe.
O resultado foi imediato:
- Explosão do mercado informal de bebidas;
- Aumento expressivo da evasão fiscal;
- Retorno da sonegação a níveis pré-2008.
Segundo o ETCO (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial), até 30% do mercado de bebidas voltou à informalidade em alguns segmentos. A União passou a perder bilhões de reais por ano em tributos.
O avanço do comércio ilegal de bebidas acabou prejudicando as pequenas e médias empresas formalizadas, atacadas por cima pelo poder de cartel das grandes, e na base pelo comércio de bebida falsificada.
A cronologia da evasão
Antes de 2008: evasão no setor de bebidas girava em torno de 35%;
Com o Sicobe (2008–2016): caiu para cerca de 10%;
Após a extinção (2016–2025): voltou a subir, chegando a quase 30%.
Agora, além da perda fiscal e da concorrência desleal, começam a surgir os casos de mortes causadas por bebidas adulteradas – consequência direta da desregulamentação promovida por Meirelles e Rachid.
Um crime de Estado?
Especialistas em segurança pública e tributária poderiam perfeitamente classificar o episódio como um possível crime de Estado. Afinal, por trás da decisão técnica, havia um lobby poderoso influenciando políticas públicas.
A Receita alega que o Sicobe atuava apenas em bebidas não destiladas, o que não explicaria a epidemia de metanol.
Leia menos