O Superior Tribunal de Justiça não proibiu prefeitos de usar redes sociais. O que o tribunal fez, no julgamento do Recurso Especial 2.175.480, foi algo mais profundo: acendeu uma luz vermelha sobre a forma como gestores vêm utilizando suas redes pessoais para divulgar políticas públicas, sobretudo quando há risco de confusão entre comunicação oficial e autopromoção sustentada por verbas públicas. O caso analisado envolve o então prefeito de São Paulo, João Dória, e o programa “Asfalto Novo”. De acordo com o Ministério Público, o gestor teria usado material produzido com recursos públicos — vídeos, imagens, peças gráficas — para alimentar suas redes pessoais com conteúdo de alto alcance, ao mesmo tempo em que cerca de 20% do orçamento do programa teria sido destinado à publicidade.
Diante desses indícios, o TJSP havia trancado a ação de improbidade. O STJ, no entanto, restabeleceu o processo e determinou seu prosseguimento, entendendo que existiam elementos mínimos que justificavam a investigação.
O tribunal não condenou ninguém, nem criou uma espécie de “lei seca digital” para prefeitos. Mas o recado foi claro: se há indícios de que a publicidade oficial pode ter sido usada para promover a imagem pessoal do gestor — e não para informar a sociedade sobre uma política pública — o Poder Judiciário autoriza o avanço da ação de improbidade. E isso, em tempos de comunicação instantânea e de fronteira cada vez mais tênue entre público e privado, ameaça diretamente prefeitos que tratam suas redes como extensão do gabinete.
A confusão se agravou porque inúmeros portais de notícias publicaram manchetes sensacionalistas, afirmando que o STJ teria proibido o uso de redes pessoais para divulgação de obras. A CNM, a ABM, a UVB e diversos especialistas em direito administrativo tiveram de emitir notas e análises esclarecendo o óbvio: a decisão não proíbe a postagem, mas alerta para o risco jurídico da mistura entre comunicação institucional e autopromoção. A decisão abre margem para que promotores investiguem gestores que utilizarem material custeado pelo erário em seus perfis pessoais. (CNM – Nota de esclarecimento, 22/09/2024)
O fato novo — e que deveria preocupar qualquer prefeito — não é a discussão sobre redes sociais, mas a interpretação renovada da Lei 14.230/2021, que reformou a Lei de Improbidade. O artigo 11 continua vedando expressamente a promoção pessoal com recursos públicos. E o STJ deixou claro que as redes sociais pessoais podem, sim, ser objeto de análise para verificar se houve utilização de publicidade oficial em proveito do agente político. Há ainda outro elemento que torna tudo mais delicado: segundo o portal Metrópoles, Ministérios Públicos de diversos estados já estão estudando aplicar a “tese Doria” para fiscalizar prefeitos que usam seus perfis digitais de forma confusa, institucionalizando a vida pessoal e personalizando a vida institucional.
Esse é o ponto central: a fronteira entre informar e promover nunca foi tão tênue. Quando o prefeito utiliza no Instagram pessoal o mesmo card, a mesma identidade visual, o mesmo slogan e o mesmo material gráfico produzido pela prefeitura, ele cria simultaneamente engajamento e prova contra si. A Folha de S.Paulo sintetizou o problema: “quando o gestor copia o card oficial no perfil pessoal, transforma a peça institucional em peça publicitária”. E isso, dependendo do contexto, pode ser interpretado como uso de máquina pública em benefício pessoal. (Folha, 23/09/2024)
O risco, portanto, não está na postagem isolada, mas no conjunto da obra. Um feed pessoal que parece um mural institucional; um vídeo oficial que aparece no perfil privado; uma obra que surge como conquista pessoal do prefeito, não como resultado da administração; um impulsionamento pago que reforça a imagem individual; e, pior, a vinculação desse comportamento ao calendário eleitoral. É justamente esse tipo de cenário que levou o STJ a permitir o prosseguimento do processo no caso Doria.
A verdade é que, se antes a discussão era apenas teórica, agora tornou-se prática e imediata. Gestores que tratam suas redes como palanque permanente, sem separar a linha entre pessoa e função, estão abrindo portas para investigações que podem resultar em desgaste político, ações civis públicas, bloqueio de bens e até inelegibilidade. A comunicação institucional é um dever constitucional. Já a promoção pessoal financiada pelo contribuinte continua sendo ilegal — e agora mais fácil de rastrear.
A saída não é o medo, mas a organização. Prefeitos precisam estabelecer, com rigor, a separação entre perfis institucionais e pessoais, criar regras claras para suas equipes, evitar o uso de material gráfico oficial em contas privadas, e orientar a população para os canais formais de comunicação pública. Redes sociais são instrumentos indispensáveis de prestação de contas, mas só funcionam a favor quando respeitam a legalidade, a impessoalidade e o bom senso.
A decisão do STJ não fecha redes sociais de ninguém. O que ela faz é algo mais poderoso: inaugura uma nova fase da discussão sobre comunicação pública na era digital. E, queira ou não, o Ministério Público, os Tribunais de Contas e a sociedade estarão assistindo — printando, arquivando e analisando — cada passo dos prefeitos nas plataformas.
No final das contas, o que derruba mandato não é a obra que não foi postada. É o post que foi feito do jeito errado.
*advogado, escritor e fundador do Instituto IGEDUC (projetos@igeduc.org.br)
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