Por Jorge Henrique Cartaxo e Lenora Barbo*
Especial para o Correio Braziliense
“No sábado, 7 de agosto de 1976, o país levou um susto com o alarme falso de que Juscelino havia morrido em um desastre de automóvel na estrada Rio–São Paulo. O desmentido só veio à noite, nos jornais, e no dia seguinte, no Fantástico, da TV Globo.
Do Rio, pressionada pela reportagem do Jornal do Brasil, Sarah Kubitschek ligou para Vera Brant, amiga de JK em Brasília. Vera recebeu também telefonemas dos jornalistas Carlos Castelo Branco e Hélio Doyle.
Leia maisFoi imediatamente à fazendola de Juscelino, em Luziânia, a 70 quilômetros de Brasília. Encontrou-o, como sempre, extrovertido, mas cercado de jornalistas e muito intrigado. Quando a imprensa saiu, Vera lhe disse:
— Juscelino, acho que jogaram esse alarme falso para avaliar que tipo de emoção causaria no país a sua morte. Cuidado, que vão matar você.
— Olha, Vera, sem brincadeira, acho que só com a minha morte será possível o processo de redemocratização. Eles temem demais a minha volta.
Dois dias depois (9 de agosto), Juscelino desembarcava no aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte, recebido por seu amigo Serafim Jardim:
— Presidente, o senhor nos deu um susto anteontem!
— Serafim, esses canalhas sonham com a minha morte.
Mais dois dias (11 de agosto), JK voltou a Brasília e, no bar do Hotel Eron, abatido, deprimido, olhando o Eixão de Brasília todo iluminado lá embaixo, disse a Vera Brant e Olavo Drummond:
— Será que não verei minha pátria livre nunca mais?
No dia 22 de agosto, JK ia de São Paulo para o Rio, pela Via Dutra, e, em Resende, o carro dirigido pelo motorista Geraldo, com ele no banco de trás, recebeu uma fechada. Segundo testemunhas, ouviu-se um estampido; o veículo desgovernou-se para a pista contrária e bateu de frente numa carreta.
Os dois morreram na hora. Quando a polícia chegou, alguns senhores de terno, cabelo curto e óculos escuros fotografavam os corpos. Disseram-se repórteres e saíram rápido numa Caravan marrom, placa 0001.
No necrotério de Resende, para onde foram levados, tropas do Exército cercaram o caixão do motorista, não deixando ninguém aproximar-se. Já o de JK podia ser visto por quem quisesse. Anos depois, em 1996, o amigo Serafim Jardim conseguiu a exumação dos corpos, constatando-se o crânio do motorista perfurado por um artefato metálico, apontado como ‘prego do caixão’”.
Essa história está contada em Folclore político — Sebastião Nery — Geração Editorial, 2002. Nery (1932–2024) foi jornalista, deputado federal, adido cultural do Brasil em Paris e em Roma. Como homem de imprensa, notabilizou-se pelo brilho, talento, humor e seriedade.
Todas as investigações sobre a morte de JK sempre concluíram pelo “fator acidental”. O atentado jamais seria comprovado exatamente. De todo modo, o relato de Sebastião Nery, com seus atores e personagens, e a crônica anunciada da tragédia, trazem para a cena histórica do país o impacto do destino contra a virtude pública. Dom Pedro II foi escorraçado do Brasil numa madrugada fria e solitária. Getúlio tiraria a própria vida com um tiro no coração, numa manhã de agosto. Juscelino teria a vida interrompida na penumbra de uma cena irresoluta. Menos de dez anos depois, o também mineiro, parceiro e amigo de Getúlio e de JK, Tancredo Neves seria traído pela saúde na véspera de sua posse como presidente da República, em 1985.
JK, o herói desse texto, como seu contemporâneo Winston Churchill, era destemido e determinado na batalha, porém magnânimo na vitória. Como homem que enfrentou, com rara coragem e sabedoria, as glórias e os infortúnios do seu tempo, Juscelino nos remete ao shakespeariano Benvolio. Primo e amigo de Romeu, Benvolio Montague, no clássico Romeu e Julieta, exerce o papel de mediador e pacificador na sangrenta disputa movida pelo ódio e pelos ressentimentos entre as famílias Montéquio e Capuleto. A raiz latina bene (bom) e volo (desejo) constitui o significado do nome Benvolio: benevolente e pacificador. Assim era o cidadão e homem público Juscelino Kubitschek, em seus passos pela nação, buscando o diálogo entre a opulência e a miséria, a brutalidade e a cordialidade, os descaminhos e o destino.
Jan Nepmuk Kubícek, bisavô de Juscelino, marceneiro de grande talento, nasceu na Boêmia durante o Império Austro-Húngaro (não havia ainda a República Tcheca). Ruivo e de olhos azuis, Jan chegou ao Brasil em 1835 e logo teve seu nome abrasileirado: João Alemão. Em 1840, na região do Serro, em Minas, consta o primeiro registro de João Nepomuck Kubitschek no Brasil. Augusto Elias Kubitschek e João Nepomuceno Kubitschek, filhos de João, tiveram presenças distintas na história do País. Elias Kubitschek, comerciante de armarinhos, foi o pai de Júlia, mãe de Juscelino. Nepomuceno Kubitschek, tio-avô de JK, foi professor, advogado, jornalista, fazendeiro e vice-governador de Minas Gerais entre 1894 e 1898.
Juscelino nasceu em 1902 na cidade de Diamantina. Seu pai, João César Oliveira — caixeiro-viajante, garimpeiro e delegado de polícia — faleceu, vítima de tuberculose, em 1905. Com 32 anos, professora primária, Júlia teria que cuidar e educar duas crianças: Maria da Conceição, então com quatro anos, e Juscelino, então com três anos. Eufrosina, a primeira filha de Júlia, nascida em 1900, havia falecido nos primeiros meses de vida.
Em 1914, então com 12 anos, Juscelino ingressa no seminário diocesano de Diamantina. Em 1919, com o apoio de um tabelião da cidade, alterou sua certidão de nascimento para poder se inscrever em um concurso de telegrafista, em Belo Horizonte. Ele tinha 17 anos, e as inscrições não eram permitidas para menores de 18. Em maio de 1921, foi divulgada sua nomeação para telegrafista auxiliar. No ano seguinte, JK prestou vestibular e matriculou-se no curso de Medicina.
Em 1926, já concluindo o curso, iniciou suas atividades profissionais com o cunhado, Júlio Soares, na enfermaria da clínica de cirurgia da Santa Casa. Famoso entre os amigos pelo gosto de dançar, numa festa Juscelino conhece Sarah Gomes de Souza Lemos, filha do deputado federal Jaime Gomes de Souza Lemos. Em novembro de 1927, conclui o curso de medicina, passando a trabalhar em uma clínica particular, como assistente do professor Baeta Viana, e como médico da Caixa Beneficente da Imprensa Oficial do Estado.
Em 1930, Juscelino realiza sua primeira viagem à Europa, onde faria um curso rápido em Paris — três semanas — com o professor Maurice Chevassu. Antes do retorno ao Brasil, esteve em Viena, Berlim e na Tchecoslováquia. De volta a Paris, foi informado sobre a Revolução de 1930 e a vitória de Getúlio Vargas. Naquela mesma noite, ele e os amigos Cândido Portinari e Leopoldo Fróes comemoraram na noite parisiense. De volta ao Brasil, em novembro de 1931, montou seu consultório, voltou a trabalhar na Santa Casa de Misericórdia e foi nomeado, com o apoio de Gustavo Capanema — então secretário de Justiça — médico da Força Pública. Iria servir como capitão-médico do Hospital Militar. Em dezembro, casou-se com Sarah na Igreja da Paz, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Com a Revolução Constitucionalista de 1932, JK, como médico-militar, apoiou o governo Vargas nos combates na Serra da Mantiqueira.
Nomeado por Vargas como interventor federal no governo de Minas Gerais, Benedito Valadares convidou JK para sua chefia de gabinete. Com o prestígio do cargo, ele cuidou de preservar edifícios históricos em Diamantina e providenciou a construção de uma ponte sobre o Ribeirão do Inferno, que ligava Diamantina à cidade de Rio Vermelho. Em 1934, foi eleito deputado federal. Essa primeira experiência parlamentar foi curta. Com o Estado Novo em 1937, o Congresso Nacional foi fechado. Em 1940, nomeado prefeito de Belo Horizonte, Juscelino consolida sua liderança no Estado e começa a aparecer no cenário nacional com a inauguração do Conjunto Arquitetônico da Pampulha e a famosa Exposição de Arte Moderna, em BH. Em 1945, com o fim do Estado Novo e a redemocratização do País, elege-se deputado federal para a Assembleia Nacional Constituinte. Em julho de 1950, foi indicado pelo PSD como candidato ao governo de Minas. Por ironia, disputou as eleições com o concunhado Gabriel Passos, casado com a irmã de Sarah.
“Energia e Transporte.” Foi esse o slogan de sua campanha. Minas, com suas montanhas, ainda era um Estado predominantemente rural e agrário. Desenvolvimentista e modernista, JK queria a indústria, a técnica e o fascínio das grandes cidades. Vitorioso, construiu mais de mil quilômetros de estradas, 251 pontes e 160 centros de saúde. Matriculou, até o final de seu governo, mais de um milhão de alunos — quando assumiu, eram 680 mil jovens estudantes. Criou a Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), aumentou de forma exponencial a capacidade energética do Estado com a construção de cinco usinas hidrelétricas e iniciou investimentos para a edificação de uma significativa e transformadora produção metalúrgica. Foi na inauguração da siderúrgica Mannesmann — à época um grande investimento de capital alemão — que Vargas fez sua última aparição pública, aceitando o convite de JK. O presidente da República se mataria dias depois. Juscelino foi o único governador do País a comparecer ao velório no Catete.
Eleito presidente da República em 1955, num cenário de tensão política e ameaças de golpe que o obrigaram a tomar posse, em janeiro de 1956, com o País em estado de sítio, Juscelino, enquanto presidente, manteria o mesmo vigor e a mesma ousadia que haviam caracterizado suas gestões como prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas. Com o slogan “Cinquenta anos em cinco”, JK impulsionou a industrialização no Brasil, de certo modo iniciada por Vargas, construiu Brasília e ofereceu ao mundo a feição da possibilidade de um novo país no concerto das grandes nações em reconstrução no Ocidente do pós-guerra. Com o desenvolvimentismo e seu arrojado Plano de Metas, fez convergir para a economia brasileira, entre 1956 e 1961, mais de dois bilhões de dólares em investimentos. O país crescia 7,9% ao ano. A consolidação do que então se entendia por progresso parecia inexorável. Não aconteceu exatamente assim, mas ele foi, depois de Vargas, o maior estadista da história republicana brasileira.
Veio a inflação e a concentração de renda. A eleição de Jânio Quadros e sua renúncia. A crise do governo João Goulart e o golpe de 1964. As perseguições, as injúrias, os processos, as intimidações, o exílio e o silêncio. A expectativa de um retorno triunfal até a morte surpreendente, em 1976.
“Dom Pedro II foi escorraçado do Brasil numa madrugada fria e solitária. Getúlio tiraria a própria vida com um tiro no coração, numa manhã de agosto. Juscelino teria a vida interrompida na penumbra de uma cena irresoluta. Menos de dez anos depois, o também mineiro, parceiro e amigo de Getúlio e de JK, Tancredo Neves seria traído pela saúde na véspera de sua posse como presidente da República, em 1985.”
‘Com o desenvolvimentismo e seu arrojado Plano de Metas, fez convergir para a economia brasileira, entre 1956 e 1961, mais de dois bilhões de dólares em investimentos. O país crescia 7,9% ao ano. A consolidação do que então se entendia por progresso parecia inexorável. Não aconteceu exatamente assim, mas ele foi, depois de Vargas, o maior estadista da história republicana brasileira.”
*Jorge Henrique Cartaxo é jornalista e Diretor de Relações Institucionais do IHGDF | Lenora Barbo é arquiteta e Diretora do Centro de Documentação do IHGDF
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