Por Antonio Magalhães*
Num dos capítulos do livro “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Márquez, a mais importante obra literária sobre a sofrida gente da América Latina, o autor narra a ocorrência de uma epidemia chamada a “peste da insônia” que contamina toda a cidade imaginária de Macondo fundada pelo patriarca da família José Arcádio Buendía.
A doença identificada primeiramente pelo brilho excessivo dos olhos da personagem Rebeca deixa todo mundo sem dormir por dias e meses e como efeito colateral faz com que os moradores da cidade comecem a esquecer nomes, pessoas, coisas e fatos. Todos querem ficar em casa pois não se lembram mais dos caminhos e o que fariam fora dela.
A família Buendía percebe a gravidade do esquecimento que está tomando conta de toda cidade e instrui os moradores a colarem papéis com nomes dos objetos e suas funções, os familiares e amigos são identificados com uma espécie de crachá, as casas estampadas com os nomes dos proprietários, assim por diante. Logo toda cidade está marcada com papeletes.
Leia maisQuando parece não haver mais solução para a falta de sono e o enfraquecimento da memória, o cigano Melquíades, amigo e guru do patriarca José Arcádio, a quem apresentou as inovações das coisas do mundo, reaparece em Macondo com uma poção mágica que corta o efeito da epidemia de insônia de toda a cidade. E volta a memória dos moradores da cidade.
Esta introdução baseada na obra prima de Garcia Márquez, transformada em série pela Netflix, é uma metáfora do que acontece com os brasileiros. A nossa “peste” trouxe insônia, diante da angústia pela incapacidade de reação, e esquecimento do que é correto, do que emana a Constituição Federal e todo o arcabouço legal do país.
Hoje o País hoje está desmemoriado por culpa de uns tantos maus brasileiros. Mas, felizmente, há também questionadores que têm uma vaga lembrança do que fomos como Nação. Colar papéis identificadores, como fez José Arcádio Buendía em Macondo, não funcionaria por aqui. Onde se leria “justiça” um desses terroristas de bíblia na mão acrescentaria “(in) justiça”. No lugar de “governo” seria incrementado com “(des) governo”. O papelete “forças armadas” se transformaria em “frouxas armadas”. O “congresso” seria “(ex) congresso”.
A maior parte da população brasileira vitimada pela “peste da insônia”, por sua vez, está cada vez mais calada e desmemoriada diante da calamidade. Os papeletes de identificação, se fossem distribuídos por todo o país, aumentariam com uma rapidez avassaladora, diante da epidemia da falta de memória nacional, continuando a ser contestados por questionadores ou transformados em “memes” na Internet, tida pelos homens maus como uma “ferramenta do diabo”.
E pior, por enquanto não há no horizonte a possibilidade de um cigano Melquíades aparecer por aqui com seu chá milagroso para restaurar a memória nacional e a ordem das coisas. Hoje, as pessoas, coisas e fatos são identificados apenas por papéis metafóricos inúteis. É isso.
*Jornalista
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