Do jornal O Globo
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não escondeu nos bastidores de Brasília o entusiasmo com o sucesso do filme “Ainda estou aqui”, do diretor Walter Salles, vencedor do Oscar 2025 de melhor filme internacional. Assim que o filme ganhou o prêmio, Lula disse a aliados que a trama fez um “embate muito maior” contra a ditadura militar do que a esquerda conseguiu fazer nos últimos 30 anos.
O filme, que entra no catálogo do Globoplay amanhã, retrata o desaparecimento forçado do ex-deputado Rubens Paiva em 1971 e a dedicação de sua viúva, Eunice, para comprovar o envolvimento do Estado em sua morte, além de seus efeitos devastadores na dinâmica da família à época.
Lula tem adotado uma postura ainda mais cautelosa com as Forças Armadas depois dos ataques do 8 de janeiro. O governo petista proibiu manifestações sobre a caserna no aniversário do golpe, além de ter adiado por um ano e meio a reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, responsável por emitir pareceres sobre indenizações a familiares e mobilizar esforços para localizar os restos mortais das vítimas do regime militar.
Leia mais
Como mostramos na coluna de Malu Gaspar à época, a retomada do funcionamento do colegiado contou com o apoio dos ministérios dos Direitos Humanos, o da Justiça e o da Defesa, mas empacou na Casa Civil e sofreu resistência das Forças Armadas.
Em uma conversa recente com aliados justamente sobre o 31 de março, o presidente disse que o filme ajudou na agenda do combate ao autoritarismo e “fez mais pela luta da esquerda do que as ações de governo” desde a redemocratização, o que obviamente inclui os 15 anos de governo do PT entre os mandatos do petista e de Dilma Rousseff e compreende marcos como a Comissão Nacional da Verdade.
Na avaliação do presidente, “Ainda estou aqui” ampliou a compreensão da sociedade sobre a gravidade do regime ditatorial que vigorou entre 1964 e 1985.
O Globo de Ouro de melhor atriz em um filme de drama vencido por Fernanda Torres, que interpretou a matriarca no longa, a campanha pelo Oscar em três categorias – incluindo a de melhor filme, feito inédito para o Brasil – e a primeira estatueta do cinema nacional pautaram o drama da família Paiva e os crimes dos porões da ditadura a nível internacional, além de impulsionarem a bilheteria brasileira: quase 6 milhões de pessoas foram aos cinemas ao longo dos quatro meses em que a produção ficou em cartaz.
No mundo todo, “Ainda estou aqui” arrecadou mais de US$ 35,4 milhões até agora, superando a bilheteria internacional de “Cidade de Deus”.
Desde o lançamento do filme, a certidão de óbito de Rubens foi corrigida para incluir que sua “morte violenta” foi provocada “pelo Estado brasileiro”. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também alterou outros 404 certificados de desaparecidos políticos no bojo da repercussão da obra. Os documentos passaram a registrar “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população brasileira como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pautar a discussão sobre a aplicação da Lei da Anistia de 1979 aos responsáveis pelo crime de ocultação de cadáver durante a ditadura, como é o caso dos envolvidos no desaparecimento de Rubens.
Em outra frente, o governo Lula também decidiu reabrir o caso da morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) em um acidente automobilístico em 1976 cujas circunstâncias são questionadas até hoje. O episódio será revisitado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos.
Mas, mesmo passados 40 anos desde a redemocratização, o regime militar segue como um tema espinhoso mesmo para as administrações petistas.
Em 2024, ano que marcou os 60 anos desde o golpe militar que derrubou João Goulart, Lula orientou expressamente auxiliares do governo a evitar manifestações alusivas à efeméride, incluindo o então ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida.
No mesmo ano, em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar na RedeTV, disse estar mais preocupado com o 8 de janeiro do que com o golpe de 1964, que “já faz parte da história” e “já causou o sofrimento que causou”. A fala provocou críticas de vítimas da ditadura e familiares de perseguidos políticos.
Neste ano, para além dos bastidores, o petista tem ensaiado uma calibragem do discurso. Em 15 de março, que marcou 40 anos desde a posse de José Sarney, o primeiro presidente civil desde 1964, Lula declarou nas redes sociais que a democracia não está blindada de riscos na atualidade.
“O Brasil é hoje o país que cresce com inclusão social. Que combate a fome e as desigualdades. Que gera empregos, aumenta a renda e melhora a qualidade de vida das famílias. Que cuida de todos, com um olhar especial para quem mais precisa. Sem a democracia, nada disso seria possível. Por isso, é preciso defendê-la todos os dias daqueles que, ainda hoje, planejam a volta do autoritarismo”, declarou o presidente na mensagem replicada também pelos veículos oficiais do governo.
O presidente chegou a organizar uma sessão de “Ainda estou aqui” no Palácio do Alvorada em fevereiro deste ano e convidou os presidentes da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), diante da pressão de parlamentares aliados de Jair Bolsonaro pela aprovação da anistia aos envolvidos no 8 de janeiro, pauta que recebeu acenos de Motta.
O evento também contou com a presença da primeira-dama, Janja, diversos ministros de governo, representantes do Judiciário, empresários e de dois netos de Rubens e Eunice: Chico Paiva, diretor do Departamento de Descarbonização e Finanças Verdes do Ministério da Indústria e do Desenvolvimento, e o economista Juca Paiva.
Leia menos