Por Blog do Flávio Chaves*
A noite já se despede, arrastando consigo os últimos acordes de frevo, os ecos de risos e os suspiros de quem ainda tenta prolongar a magia efêmera do Carnaval. As ruas, outrora inundadas de cores, brilhos e alegria, agora respiram o silêncio cansado de quem dançou até não poder mais. E lá ia ele, o folião solitário, carregando nas mãos o estandarte que, como um espelho da alma, confessava ao mundo: “Eu sozinho”.
Ele havia saído de casa com o coração cheio de esperanças, como quem carrega um balão colorido, pronto para subir aos céus. Acreditava que, em meio aos blocos líricos, aos maracatus pulsantes, aos caboclinhos que dançavam como se o chão fosse um altar, ele encontraria ela. A mulher dos seus sonhos, a que completaria a letra do frevo que ele cantava baixinho enquanto se arrumava diante do espelho. Mas o Carnaval, esse mestre ilusionista, brincou com ele. Mostrou-lhe rostos, sorrisos, olhares que cruzaram os seus, mas nenhum que parasse para ficar.
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Ele seguiu todos os ritmos, como quem segue pistas de um tesouro perdido. Nos blocos de rua, misturou-se à multidão, sentindo o calor dos corpos, o suor que escorria como um rio de vida. Nas passarelas, aplaudiu as fantasias que pareciam saídas de sonhos, mas nenhuma delas trouxe consigo o rosto que ele ansiava. Nos maracatus, deixou-se embalar pelos tambores, que batiam como se fossem o coração da cidade, mas nem mesmo a cadência mais forte conseguiu sincronizar o seu coração com outro. E nos caboclinhos, onde as penas coloridas voavam como pássaros em êxtase, ele buscou, em vão, o olhar que o faria sentir-se em casa.
A quarta-feira de cinzas chegou como um suspiro melancólico. O sol ainda não havia nascido, mas a madrugada já vestia o manto cinzento da despedida. Ele caminhava devagar, como quem carrega um fardo invisível. O estandarte, que antes era leve, agora pesava como uma lápide. “Eu sozinho”, lia-se nele, em letras que pareciam chorar. Mas, em um gesto de pura solidariedade humana, outros foliões, cansados mas ainda cheios de ternura, juntaram-se a ele. Formaram uma pequena procissão, uma última roda de Carnaval, e começaram a cantar um frevo de bloco, daqueles que falam de amores perdidos, de saudades que doem e de esperanças que teimam em renascer.
Era um canto nostálgico, mas também cheio de beleza. Como se dissessem a ele: “Não estás sozinho, amigo. A vida é um Carnaval, e nem sempre encontramos o amor que buscamos, mas seguimos dançando, porque a música não pode parar.” Ele sorriu, um sorriso pequeno, mas verdadeiro. E, enquanto caminhavam, as luzes da cidade começavam a se apagar, uma a uma, como estrelas que se despedem do céu.
Ao chegar em casa, ele colocou o estandarte no canto da sala, onde a luz do amanhecer pudesse iluminá-lo. “Eu sozinho”, lia-se ainda, mas agora as palavras pareciam menos duras, menos definitivas. Ele sabia que o Carnaval havia acabado, mas também sabia que a vida era feita de ciclos. E, em algum lugar, talvez no próximo ano, ou no próximo bloco, ou na próxima esquina, ele encontraria o amor que buscava. Até lá, seguiria dançando, porque a música, ah, a música nunca pode parar.
E assim, enquanto o sol nascia, ele fechou os olhos e deixou que o frevo de bloco, agora apenas uma melodia na memória, o embalasse em um sono tranquilo. Porque, no fim das contas, mesmo sozinho, ele ainda tinha a música, a poesia e a promessa de que, um dia, o coração bateria no mesmo ritmo que outro.
E, naquele instante, enquanto a cidade acordava e o Carnaval se transformava em lembrança, ele percebeu que a vida era como um grande cortejo: às vezes estamos à frente, carregando o estandarte; outras vezes, nos perdemos no meio da multidão, mas sempre seguimos em frente, porque a marcha não pode parar.
E, no silêncio que se seguia à festa, ele encontrou uma quietude que não era vazia, mas cheia de possibilidades. Porque, afinal, até mesmo a solidão pode ser um refúgio onde se aprende a ouvir o próprio coração. E, enquanto ele dormia, sonhou com um novo Carnaval, onde o estandarte já não dizia “Eu sozinho”, mas sim “Eu esperei, e valeu a pena”.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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