Marco Maciel e Aureliano atenderam Luiz Gonzaga e acabaram com a guerra de famílias em Exu

Marco Maciel e Luiz Gonzaga

Capítulo 4 

Encravada na Chapada do Araripe, a 630 km do Recife, já quase em solo cearense, a pequena Exu viveu uma guerra sem fim, por muitos anos. O ódio entre as famílias Alencar, Sampaio, Saraiva e Peixoto moldou casas e hábitos. Suas fachadas tinham poucas janelas, as portas ficavam fechadas em dias de intenso calor, as conversas e os cumprimentos nas ruas eram rápidos e dificilmente se viam.

Nas noites frescas do Sertão, mulheres e crianças em cadeiras nas calçadas eram muito raras. Nada de muita conversa. Tudo por causa do clima de medo que pairava no ar. A cidade deveria ser alegre, viver no ritmo da sanfona branca de Luiz Gonzaga, o filho mais ilustre. Mas Exu era uma tristeza só. O derrame de sangue deixou marcas e uma dor que parecem não sumir nunca das lembranças.

Deixou cerca de 60 mortos apenas no período mais duro – da década de 1940 ao início dos anos 1980. Em 1982, ano em que os brasileiros voltaram às urnas para eleger governadores, 18 anos após o golpe militar contra o presidente João Goulart, Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, ajudou a acabar com uma disputa do tempo do Brasil Colônia, que se transformou no maior símbolo das rixas de clãs na política nacional.

Um ano antes, em 1981, Gonzagão surpreendeu o então presidente em exercício Aureliano Chaves no saguão de um hotel em Belo Horizonte, ao tocar a música Boiadeiro. Sensibilizado, Aureliano, que tinha fazenda em Minas Gerais, foi cumprimentá-lo e o sanfoneiro pediu apoio para acabar com a luta de famílias em sua Exu.

A súplica do filho mais ilustre da terra bateu forte no coração do presidente. Pouco tempo depois, aproveitando um período em que esteve no poder, chamou Marco Maciel ao Planalto e este comprou a briga, nomeando o Coronel Moura, na época Major, como interventor. Amigo do cantor, Maciel já havia adotado a música Asa Branca num projeto de perenização de rios sertanejos. Por um ano e meio, a cidade foi sitiada.

“Além de conciliador, apagador de incêndios políticos que ajudaram o País a chegar a um processo com uma democracia mais sólida, Marco Maciel também foi um pacificador. A própria história de Exu está aí como exemplo sólido em nossas vidas, nas vidas daquela gente”, diz o ex-governador Gustavo Krause. 

Exu, lembra Krause, passou a contar com um dos maiores efetivos da Polícia Militar de Pernambuco. “Os bares não podiam funcionar depois das 22 horas e várias outras medidas de segurança foram tomadas. Uma felicidade, enfim, para os moradores, que já demonstravam cansaço, tristeza e impaciência com o conflito insano. As medidas surtiram efeito, a cidade foi pacificada”, destacou o ex-governador. 

Se o acordo de paz entre as famílias não tivesse sido selado, a luta poderia se exaurir por decisões tomadas no cartório de registro civil da cidade. Pais de família registravam os filhos com o sobrenome do clã rival ou evitavam colocar os seus próprios sobrenomes nos recém-nascidos para garantir a “neutralidade” das crianças. Três irmãos de uma mesma família Sampaio chegaram a ser registrados como Alencar, orientados por um tabelião. 

O Rei do Baião entrou na história porque, já a partir dos anos 1970, tentou pacificar as famílias de Exu. Foi aceito como mediador graças ao seu sucesso como cantor e porque não tinha sangue Sampaio nem era considerado um Alencar das duas primeiras castas – dos nobres e dos intermediários. Gonzaga descendia dos Alencar “misturados”. “Era só cheio de graça”, lembra o exuense Floriano Saraiva.

O mais famoso personagem dos conflitos em Exu é o Coronel Romão Sampaio, morto num tiroteio em 1949. Era filho do coronel Romão Filgueira Sampaio, intendente de Salgueiro em 1867 e primeiro prefeito da cidade (1892-95), que esvaziou o poder do coronel Manuel de Sá – um ex-coletor de impostos da Coroa portuguesa no Semiárido, descendente de dom Diniz, rei de Portugal, e da rainha Isabel, da Espanha.

Os descendentes de Bárbara de Alencar correram o mundo e atuaram em papéis importantes na história do Brasil. Da matriarca descendem republicanos e monarquistas, getulistas leais e adversários ferrenhos de Vargas, intelectuais do Partido Comunista e generais do regime militar, gente da esquerda e da direita. Raquel de Queiroz, autora de O Quinze, não esqueceu da matriarca ao idealizar Maria Moura, a protagonista do romance. Ela própria, Raquel, como Bárbara, foi presa política, na ditadura Vargas, em 1937.

Foi em outra ditadura, em 1964, que um descendente de Bárbara chegou à Presidência. Ao assumir o governo, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco recebeu carta de Antoliano Alencar, de Exu, pedindo que intercedesse por outro parente: o então governador de Pernambuco, Miguel Arraes de Alencar, adversário do novo regime. 

“Nunca tive, não tenho e Deus me livre de ter tendências comunistas. Espírito conservador, feliz herança de nossos ancestrais que guardo e conservo como joia de valor inestimável, aqui estou perante o cidadão Humberto de Alencar Castelo Branco pedindo que interceda a favor de Miguel Arraes de Alencar, para que se conserve intacta a lealdade e a coragem com que sempre agiram os Alencar de uns para os outros”, escreveu.

“Não peço a defesa de Miguel político, homem de Estado, mas a defesa da raça Alencar no Brasil de que V. Exa. é a expressão mais legítima”, completou. “As Forças Armadas cumprem o seu dever com independência, bravura e altivez. No dia primeiro depõem do cargo de governador de Pernambuco e prendem um Alencar, mas depois, por que põem na Presidência da República um Alencar? Porque os Alencar são leais e sinceros”, acrescentou.

A mesa onde Luiz Gonzaga tentava resolver o conflito secular está na antiga casa do sanfoneiro, em Exu. “Ele sempre foi uma pessoa de barriga cheia, de luxo. O luxo dele era a comida”, lembra Raimunda de Sale, 68 anos, a Mundica, sua fiel cozinheira. Ela conta que Gonzagão convidava em separados representantes dos dois clãs. “Só na hora do jantar os Sampaio sabiam da presença dos Alencar e os Alencar, dos Sampaio”, diz.

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