Por Delmiro Campos*
Todos os dias, das telas às calçadas, a violência ganha moldura de espetáculo. Já não bastam as agressões, multiplicam-se os aplausos. Se alguém é humilhado, há quem poste que foi pouco. Se alguém é assassinado, alguém comenta que mereceu. A bola de neve não para, não há bombeiro para tanta chama. E o universo virtual segue abastecendo, com invejável regularidade, uma rivalidade mesquinha e desumana. Tudo em busca dos cliques e curtidas.
Assumo, com certa galhardia, a alcunha de radical de centro. Isso porque, não me vejo atrelado às alcunhas estereotipadas (direita, esquerda ou radicais), mas sim às pautas e a defesa de políticas públicas. Acredito que na política é preciso defender ideias em vez de pessoas, bem como ter uma linha de pensamento coerente, sem entrar nessa briga de que uma pauta é da esquerda ou da direita.
Leia maisNesse sentido, no momento atual, quando defendo pautas sociais, sou tachado de esquerdopata ou, como brinca um amigo de infância, canhoto. Quando defendo liberalismo econômico, carga tributária menos predatória e livre iniciativa, muda a alcunha, passo a ser de direita, um privilegiado a resguardar o próprio ninho. No fogo cruzado dos rótulos, sobra pouco espaço para a pergunta que realmente interessa: o que reduz sofrimento e aumenta dignidade no mundo real?
Hoje, conversando com Vinno Gomes, ele recordou da mensagem bíblica transmitida no livro de Mateus, versículo 23, onde Jesus não economiza na condenação da hipocrisia, o verniz da virtude a serviço do prestígio. Fico com isso na cabeça enquanto comparo dois universos, efêmero e etéreo, que discutíamos ao falar de relações humanas. Na política também precisamos romper com a efemeridade reativa, o post que rende curtida e ódio instantâneo, para cultivar alguma coisa etérea: princípios que sobrevivam ao trending topic e imponham contenção quando o impulso é vociferar.
Sei, pelas tribunas da advocacia eleitoral, algo que aprendi com Carlos Neves: a propaganda política deve ser a mais ampla possível, pois a liberdade cobra o preço das péssimas colocações. É uma lição que traslado para a vida online. Quem grita para a própria bolha esquece que está sob o escrutínio do mundo real, que há consequências, que um comentário espirituoso pode funcionar como combustível. Não raro, quem jura combater o radicalismo é exatamente quem o alimenta.
Nos últimos dias, o assassinato de Charlie Kirk, morto durante um evento universitário em Utah, converteu em luto uma parte do debate público norte-americano. Investigadores apontam o vínculo político do suspeito do crime, aumentando, outra vez, o risco de uma escalada de violência política. Não é, nem poderia ser, aceitável associar a perda de uma vida à biografia ideológica da vítima. O que houve foi extremismo. Ponto.
E não é um fenômeno de uma tribo só. Aqui, a morte de Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, gerou uma cicatriz na nossa história recente, com seu algoz sendo condenado por homicídio duplamente qualificado. A diferença de paleta ideológica entre as vítimas, lá e cá, não altera o essencial: banalizar a vida é o denominador comum da radicalização.
Entre o concurso do mal menor e o arroubo contra o diálogo, vai se fixando uma cultura política que premia a resposta mais feroz, o meme mais cruel, a ironia mais compartilhável. O mediador virou careta e convergir virou sinônimo de traição. Formando assim um ambiente perfeito para a hipocrisia, onde os indignados seletivos trocam de régua moral conforme a camiseta do ofendido. Mateus 23 não mudou, fomos nós que relativizamos o texto para servir ao nosso time.
Talvez ser radical de centro seja, justamente, radicalizar a defesa das regras do jogo: o respeito inegociável à vida, a recusa a toda forma de violência, a defesa da liberdade de expressão com responsabilidade e o compromisso com a consequência do que se pública. É aprender a respirar antes de postar, a perguntar para quem serve este comentário, a recusar o regozijo público da dor alheia, mesmo e sobretudo quando a vítima é adversária. É escolher a ponte onde o algoritmo oferece a catapulta.
Não peço um ambiente asséptico. Política sem conflito é paisagem de cartolina. Peço outra coisa: que o conflito seja instrumento de esclarecimento e não de extermínio simbólico, o passo anterior ao físico. Que a crítica volte a ser crítica, e não gozo. Que as palavras recuperem o peso de quem responde por elas no mundo fora da tela. Que os nossos efêmeros, posts, stories e threads, passem a ser guiados por etéreas convicções que não viralizam, mas sustentam uma democracia respirável.
Se há um radicalismo que me interessa, é o da mediação. A coragem de segurar o fósforo enquanto todos clamam por fogo na gasolina. A teimosia de ouvir quando o silêncio nos promoveria mais. A disposição de exigir de nós mesmos a coerência que exigimos do outro. Ser radical de centro não é ficar em cima do muro, é fincar estacas para que ele não desabe sobre nós. Porque, do jeito que vai, ninguém sairá ileso da fogueira. E não haverá bombeiro para tanta chama.
Foi nesse contexto que, no programa Roda Viva desta segunda-feira, 15 de setembro, ouvi o ex-presidente Michel Temer defender um Pacto Nacional entre governo e oposição. A proposta, longe de eliminar o contraditório, pretende frear a retroalimentação de discursos que apenas inflamam a polarização. O país precisa de crítica, fiscalização e divergência de ideias, mas não pode se permitir viver em guerra retórica permanente.
Temer colocou o dedo na ferida. A oposição deve existir, mas oposição não pode ser confundida com a obstinação de sabotar o país. O que se impõe é a maturidade de compreender que, sem um mínimo de convergência em torno de valores essenciais, seguiremos alimentando o radicalismo que dizemos combater.
*Advogado.
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