Quando o amor é estrada, não prisão, e a bravura fala mais alto que a ameaça
Por Flávio Chaves*
Antes do amor, veio o caos. E antes do caos, o homem que o causava. Ele andava pelas bordas da moralidade com a arrogância dos que confundem posse com afeto. Era o tipo de sujeito que só reconhecia valor no que estava prestes a perder. Nunca foi gentil, nunca foi justo. Mas sabia, como poucos, manipular com os olhos, distorcer com a voz, prometer com o medo.
Com o pastor da igreja, tentou intimidar. Criou rumores, espalhou dúvidas como quem planta erva daninha em terra sagrada. Com o diretor da escola onde ela trabalhava, encenou ciúmes travestidos de zelo, tentando minar o pouco de luz que ainda havia nela. E com Jean Marcel, homem culto e calado, chegou aos gritos numa noite ácida, só para sair cabisbaixo, empalidecido pela própria vergonha. Era, no fundo, um cabrito de latido fraco e cascos trêmulos. Um animalzinho travestido de fera.
Leia maisMas agora havia outro homem na estrada. Um que não gritava. Não implorava. Não fazia cena.
O cowboy moderno.
Não usava medalhas nem precisava contar seus feitos. Trazia nos olhos a paz de quem já atravessou desertos e sobreviveu à própria sombra. A coragem não lhe vinha do volume da voz, mas da firmeza do silêncio. Era o tipo de homem que já perdera tudo o que importava, e, ainda assim, permanecia inteiro. “A coragem não é ausência de medo, mas o julgamento de que algo é mais importante que ele”, dissera certa vez Ambrose Redmoon. Ele sabia disso como quem carrega esse peso nos ombros todos os dias.
A mulher, quando o encontrou, ainda estava cheia de estilhaços. Falava com cuidado, como quem teme que o próximo passo acione uma mina. Mas ele a ouviu com a calma de um homem que conhece o terreno das dores alheias. E viu nela o que ninguém mais quis ver: as partes inteiras em meio aos cacos.
Quando o antigo companheiro percebeu que a estava perdendo, o desespero veio como vendaval. Ofereceu estabilidade, empresa, largaria tudo. Prometeu mundos — como se o que ela precisasse fosse um alpendre de ouro para esquecer os anos de grades invisíveis. A cartilha de sempre. Gritos, súplicas, ameaças. A encenação ridícula de um rei destronado.
Mas dessa vez, o palco estava vazio. A plateia, vazia. E ele falava para o eco da própria ruína.
O cowboy apenas observava. Sem uma palavra fora de lugar. Sem um gesto de provocação. Seu silêncio era como o vento que antecede a tempestade, mas era a tempestade. Ele não precisava erguer a voz. Já havia enfrentado coisas maiores do que aquilo. Tinha lutado guerras dentro de si. Sabia que o amor verdadeiro não domina: liberta.
“O mundo quebra a todos, e depois, muitos ficam mais fortes nos lugares quebrados”, dizia Hemingway.
E ele era feito disso: de partes reconstruídas com firmeza, não com pressa. Trazia na alma um coldre invisível, e se fosse preciso, atiraria verdades como balas.
Naquela noite, sob o sol do oeste que caía como fogo calmo, ela tomou a decisão. Não era fuga. Era retorno. Não era paixão. Era redenção. Ao lado daquele homem feito de aço tranquilo e olhos quentes, ela soube: começava ali uma nova estrada.
Sem medo. Sem gritos. Sem cercas. Com fogo nos olhos.
Com ele, o cowboy, ela aprenderia que o amor não é um curral, é horizonte. Que os fortes não prendem: deixam ir. Que quem já enfrentou tempestades, não teme relâmpago. E que quem já encarou leopardos de verdade, não se abala com o berro de um cabrito mimado.
A trilha imaginária era country. Mas o silêncio era hino.
O sol não queimava mais. Iluminava.
E a poeira que ficou para trás levava um presságio:
o amor, quando vem com verdade, não precisa de armadura.
Só de coragem.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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