Por Jorge Henrique Cartaxo e Lenora Barbo*
Especial para o Correio Braziliense
Requebrune é uma pequena vila francesa à beira-mar, na Côted’Azur, entre Menton e Mônaco. Nos anos 1920, o singelo lugarejo, com suas belas paisagens, tornou-se um point de parte da elite intelectual europeia. Coco Chanel — a famosa estilista que, de certa forma, inaugurou a moda do século XX — construiu na região a sua festejada La Pausa, onde recebia a inteligência e a nobreza de então. Entre outros, Salvador Dalí e Winston Churchill foram seus hóspedes.
A célebre arquiteta modernista e designer irlandesa Eileen Gray, casada com o também arquiteto Jean Badovici, construiu, nos anos 1920, sua residência minimalista em Requebrune: a E-1027. O poeta e dramaturgo irlandês William Butler Yeats, Prêmio Nobel de Literatura em 1923, faleceu no Hôtel Idéal Séjour, onde morava, na vizinha cidade de Menton, em 28 de janeiro de 1939.
Leia mais“Tenho um castelo na Riviera que mede 3,66 metros por 3,66 metros. Fiz para minha esposa e é um lugar extravagante, de conforto e gentileza”, observou Le Corbusier ao se referir à sua pequena cabana de madeira, construída em 1951, numa encosta de Requebrune, de onde contemplava o mar, e onde costumava passar o verão com a esposa, Yvonne Gallis.
Na manhã de 27 de agosto de 1965, Le Corbusier desceu o pequeno morro para o seu mergulho diário nas águas azuis da acolhedora enseada francesa. “O Velho”, como o chamavam os locais, então com 77 anos, teve um infarto e morreu enquanto nadava.
Lucio Costa estava no Rio de Janeiro quando soube, naquele mesmo dia, da morte do amigo e inspirador — no Brasil, referência maior da arquitetura, do urbanismo e da estética modernistas. Charlotte Perriand, a bela arquiteta, decoradora e designer de mobiliário, parceira de Le Corbusier desde 1927, também estava no Rio naquele 27 de agosto. Partiram no mesmo voo, com destino a Paris e, em seguida, para Requebrune. Iriam acompanhar todo o cortejo fúnebre, da pequena vila até o ateliê de Corbusier em Paris e a grande cerimônia no Louvre.
“Havia uma casa perto do cemitério, uma casa burguesa que era justamente utilizada para as cerimônias de velório. Nós chegamos lá, estava fechada. Havia também dois dominicanos esperando para entrar. Subimos então — a Charlotte Perriand, eu e os dois dominicanos — uma escada típica burguesa, aquele mau gosto, aquela coisa, e chegando em cima havia uma sala vazia, iluminada por velas, e o caixão onde ele estava, um caixão horrível. Uma coisa tão chocante, aquele ambiente negativo, que eu fiquei com aquilo atravessado”, relembra Lucio Costa em sua entrevista a Jorge Czajkowski, Maria Cristina Burlamaqui e Ronaldo Brito, em 1987.
Na viagem a Paris, o pequeno grupo pernoitou no Convento Sainte-Marie de La Tourette, em Éveux. Projetado por Le Corbusier e inaugurado em outubro de 1960 — sua última grande obra na França —, o convento dominicano foi considerado Monumento Histórico em dezembro de 1979. Em 2016, a Unesco o declarou Patrimônio Mundial. Em junho de 1970, frei Tito, exilado na França, foi acolhido no convento Sainte-Marie de La Tourette. Foi ali que o dominicano cearense, atormentado pelas torturas sofridas no Brasil, enforcou-se no galho de um álamo, em 10 de agosto de 1974.
“A igreja fica numa encosta em declive e, quando chegamos, os padres dominicanos vieram ao nosso encontro. Estava chuviscando, era noitinha, e eles vieram devagar, aquele passo lento, eterno, de religioso. Passo que não faz barulho. Puseram o caixão nos ombros e desceram o caminho no talude para a entrada. Na nave, ficaram todos alinhados e o Superior leu o elogio do arquiteto que tinha feito o convento deles e que agora estava ali. Cerimônia simples e digna que apagou aquela impressão horrível lá de Menton”, lembrou ainda Lucio Costa, na mesma entrevista.
O ateliê de Le Corbusier em Paris ficava no Edifício Molitor, em 24, rue Nungesser et Coli, no 16º arrondissement. Ali ele morou e trabalhou desde 1934 até sua morte em 1965. Uma pequena multidão se aglomerava no local quando Lucio Costa e o cortejo chegaram. Sobre um corredor de acesso, com uma escada ao fundo, estava o amplo ateliê. Na antiga casa de jesuítas, o espaço de trabalho tinha cinco metros de largura e um extenso comprimento. Uma tapeçaria de Corbusier, de cor preta e vermelha, foi afixada ao fundo, compondo o cenário do esquife. Em seguida, ocorreu a cerimônia no Louvre, com o discurso histórico de André Malraux. Assim, numa demonstração incomum de admiração, amizade e respeito, Lucio Costa disse adeus ao seu mestre do urbanismo e da arquitetura modernistas.
Na Europa, Le Corbusier foi mais combatido do que admirado, ainda que suas obras sejam reconhecidas e festejadas, isoladamente, até hoje. Nos Estados Unidos, o modernismo do urbanista e arquiteto franco-suíço também teve seu lugar e vasta influência, mas em um diálogo mais amplo e, digamos assim, eclético. No Brasil, precisamente desde 1937, com o projeto do Ministério da Educação e Saúde e a consultoria de Le Corbusier — a convite pessoal de Lucio Costa —, o modernismo no urbanismo e na arquitetura se fez presente e ainda hoje nos faz sentir seus eflúvios. Claro, sem prejuízo das curvas e linhas originais de Oscar e Costa.
Lucio Marçal Ferreira Ribeiro Lima da Costa, o Lucio Costa, nasceu na cidade de Toulon, na França, em 27 de fevereiro de 1902, na Villa Dorothée Louise, no Mourillon. Seu pai era o almirante Joaquim Ribeiro da Costa, natural de Salvador, e sua mãe, Alina Ferreira, natural de uma região da Amazônia, passou boa parte da infância e adolescência em Lisboa, no internato de Mademoiselle Roussel. Só deixaria a escola para casar, numa cerimônia na igreja de São Jorge. Seguiu para Le Havre, depois Marselha e, em seguida, Toulon, onde nasceu o terceiro filho do casal.
Nesse longo período na Europa, Lucio estudou no Royal Grammar School, em Newcastle (Inglaterra), e no Collège National, em Montreux (Suíça). De volta ao Brasil, em 1917, então com 19 anos, ingressou na Escola Nacional de Belas Artes, estimulado e orientado pelo pai, concluindo o curso de arquitetura e pintura em 1924.
Ainda estudante do terceiro ano, já notável pelos seus desenhos, foi convidado pelo então diretor da Escola, o famoso paisagista Baptista da Costa, a participar de algumas obras na antiga casa de Lopes Quintas, que estava sendo loteada e agora pertencia a familiares do mestre. Nessa toada, Lucio conquistou seu primeiro emprego na firma Rebecchi e, logo em seguida, no Escritório Técnico Heitor de Mello. Foi nessa empresa que Lucio Costa realizou sua primeira obra, em 1921/22: a casa de Rodolfo Chambelland, em estilo inglês, na Avenida Paulo de Frontin.
As novas atividades profissionais retardaram um pouco a conclusão dos cursos na Escola de Belas Artes, mas isso não impediu os avanços de Lucio Costa. Um colega da turma que se formou em 1922 — ele só concluiria em 1924 —, Fernando Valentin, o convidou para abrirem um escritório de arquitetura. As primeiras salas foram alugadas na rua Gonçalves Dias, nº 30, ao lado da Confeitaria Colombo. Meses depois, mudaram para o edifício das Docas de Santos, com sua monumental porta entalhada, na Avenida Rio Branco.
“Era a época do chamado ecletismo arquitetônico. Os estilos ‘históricos’ eram aplicados sans façon, de acordo com a natureza do programa em causa. Tratando-se de igreja, recorria-se ao receituário românico, gótico ou barroco; se edifício público ou palacete, ao Luís XV ou XVI; se banco, ao Renascimento italiano; se casa, a gama variava do normando ao basco, do missões ao colonial”, relembraria, posteriormente, Lucio Costa.
Envolto nas brumas dos amores impossíveis — como ele mesmo sugere —, em 1926 resolve passar uma nova e longa temporada na Europa. No início de 1927, na Itália, adoece, é diagnosticado com um problema pulmonar e internado na Villa Igiea, sob os cuidados de uma bonita irmã de caridade. No quarto contíguo ao de Lucio, recuperava-se uma linda e simpática italiana chamada Fana. Ela gostava de recitar versos de Carducci para o enfermo arquiteto brasileiro. Certa manhã, ele acordou com um alvoroço ao lado: a gentil amiga e cúmplice daquele sofrimento e lirismo havia falecido, vítima de uma violenta hemoptise. Já em Paris, foi orientado a consultar o mais famoso especialista da época. A recuperação foi confirmada!
De volta ao Brasil, estendeu sua vilegiatura até o Caraça, em Minas Gerais, onde ficou um mês como hóspede de Dom Jeronymo. Durante o dia, comprazia-se na contemplação do vasto monumento religioso. Lamentava a destruição, pelos padres franceses, no século XIX, da linda capela do Irmão Lourenço. Gostava do monumento gótico que a substituiu, bem como da preservação da originária balaustrada, dos degraus e da escada — tudo em pedra-sabão — que ainda estavam lá.
Seguiu para Sabará, onde hospedou-se na pensão das “gordas”. Gostava da varanda dos quartos, onde apreciava o Rio das Velhas e contemplava o crepúsculo até a primeira estrela despontar. Depois, Mariana, Ouro Preto e, mais uma vez, Diamantina. Sempre que lembrava essa viagem, registrava o seu constrangimento por não ter percebido, na ocasião, a beleza e o esplendor que nos oferece a Igreja de São Francisco.
De volta ao Rio, em 1929, casou-se com sua Leleta — Julieta, filha do Dr. Modesto Guimarães. O casal foi morar em Corrêas, em Petrópolis, na casa de verão da família. Lucio gostava de lembrar do amontoado de coisas que levaria para a nova casa, sobretudo do aparelho de Macau, comum na Colônia e no Império, mas que daria lugar à louça inglesa na República. Foi com esse serviço que suas filhas, Maria Elisa e Helena, aprenderam a se servir à mesa.
Em 1930, veio a Revolução — o redesenho dos valores, das formas, da estética, da beleza e do mundo. Lucio Costa, o aristocrata gentil, iria se deparar com o moderno, a modernidade e o modernismo. E neles se faria gigante.
*Jorge Henrique Cartaxo é jornalista e diretor de Relações Institucionais do IHG-DF | Lenora Barbo é arquiteta e diretora do Centro de Documentação do IHG-DF
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