Por Inácio Feitosa*
O Brasil volta a recorrer a uma solução conhecida sempre que falha em enfrentar seus problemas estruturais: empurrar a conta para quem está na ponta. Desta vez, o destinatário é, mais uma vez, o professor da educação básica.
A Proposta de Emenda à Constituição nº 169, de 2019, autoriza a ampliação do acúmulo de cargos públicos por professores, permitindo que o magistério seja exercido simultaneamente com outro cargo público de qualquer natureza, desde que haja compatibilidade de horários e respeito ao teto constitucional.
Leia maisO que torna o debate ainda mais urgente é o estágio avançado de sua tramitação. A proposta já foi aprovada pelo Senado Federal em dois turnos e, por se tratar de emenda constitucional, não depende de sanção do Presidente da República. O texto segue para promulgação pelo Congresso Nacional, etapa final do processo legislativo, quando passa a integrar definitivamente a Constituição. Não se trata mais de hipótese ou discussão acadêmica, mas de uma mudança prestes a produzir efeitos concretos sobre as redes públicas de ensino.
À primeira vista, a proposta é apresentada como valorização, liberdade profissional e ampliação de oportunidades. À segunda leitura, revela-se aquilo que de fato é: um expediente constitucional para administrar a precariedade sem resolvê-la.
A autoria do projeto não é irrelevante. A proposta foi apresentada pelo deputado federal Capitão Alberto Neto, filiado ao Partido Liberal (PL), legenda historicamente identificada com a defesa do Estado mínimo, da contenção de gastos públicos e da responsabilização individual como resposta preferencial a problemas coletivos.
É justamente aí que emerge a contradição central.
A educação pública, a valorização do magistério, a defesa de carreira estruturada e de financiamento estatal robusto sempre foram bandeiras associadas à esquerda e ao campo progressista. No entanto, a resposta apresentada agora parte de uma lógica liberal clássica: se o Estado não consegue pagar melhor, que o trabalhador trabalhe mais.
O diagnóstico que fundamenta a proposta é correto. O professor brasileiro é mal remunerado, a carreira perdeu atratividade e faltam docentes na educação básica, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste e, de forma ainda mais grave, nos municípios pequenos e médios. O erro não está no diagnóstico. Está na solução adotada.
Em vez de enfrentar o problema estrutural — salário, carreira, concurso público, formação e financiamento — opta-se por rebatizar a precariedade como liberdade individual. Se o salário não basta, acumule cargos. Se a carreira não atrai, amplie a jornada. Se faltam professores, estique os que ainda resistem.
A malícia da proposta está exatamente aí: transformar o fracasso do Estado em escolha do professor.
Do ponto de vista administrativo, a medida é funcional. Reduz a pressão por concursos públicos, posterga a discussão sobre planos de carreira e permite que o sistema continue operando com o mínimo de investimento estrutural. A União preserva seu conforto normativo; Estados e Municípios seguem executando políticas sem financiamento suficiente; e o professor assume o papel de amortecedor humano das falhas institucionais.
Do ponto de vista pedagógico, o custo é alto e deliberadamente invisibilizado. A docência passa a ser tratada como atividade compatível com múltiplos vínculos simultâneos, como se ensinar fosse apenas cumprir presença física. Planejamento, correção, formação continuada, acompanhamento individual de alunos e desgaste emocional permanecem fora da equação constitucional. A regra olha apenas para o relógio. A compatibilidade humana, intelectual e pedagógica não entra no cálculo. E o cansaço, como se sabe, ainda não é categoria jurídica.
Nos municípios, especialmente no Nordeste, essa lógica encontra terreno fértil. Onde faltam recursos, concursos e políticas de fixação de profissionais, a solução é pragmática: usar mais intensamente quem ainda está disponível. A sobrecarga deixa de ser falha do sistema e passa a ser estratégia institucional legitimada.
Há ainda um efeito colateral silencioso, mas grave. Ao permitir o acúmulo amplo de cargos, a proposta reduz a urgência por concursos, esvazia planos de carreira e normaliza vínculos precários. Resolve-se a falta de professor sem formar professor. Ajusta-se a estatística sem melhorar a educação.
No plano jurídico, a redação aberta amplia a insegurança e alimenta a judicialização. A expressão “cargo de qualquer natureza” abre espaço para interpretações divergentes, atuação permanente dos Tribunais de Contas, do Ministério Público e dos órgãos de controle. O sistema jurídico se movimenta; a sala de aula permanece sobrecarregada.
Chama atenção, também, o silêncio constrangedor de setores da esquerda institucional. Historicamente vocais na defesa do magistério, sindicatos e partidos progressistas reagiram timidamente a uma proposta que normaliza a precarização sob o rótulo da flexibilidade. O contraste entre o discurso histórico e a reação presente revela o empobrecimento do debate educacional no país.
No fim, a contradição é explícita. Um tema social historicamente associado à agenda da esquerda — a educação pública — passa a ser tratado com instrumentos típicos da direita liberal. No lugar de direitos, oferece-se adaptação. No lugar de salário, acúmulo. No lugar de política pública, resistência individual.
A proposta não cria professores, não melhora a formação, não fixa profissionais no território e não fortalece a escola pública. Mas cumpre bem sua função política: permite que o Estado continue não valorizando o magistério sem deixar o sistema colapsar.
Não se trata apenas de uma emenda constitucional. Trata-se de uma escolha política clara sobre quem paga a conta quando o Estado falha.
E, mais uma vez, a conta foi enviada ao mesmo destinatário: o professor.
*Advogado, mestre em educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), diretor e fundador do Instituto IGEDUC
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