Por Jorge Henrique Cartaxo e Lenora Barbo*
Especial para o Correio Braziliense
“Havia um ato que ainda desejava praticar, antes de tomar o carro que nos levaria ao aeroporto. Era assinalar, com um gesto, o fim de uma era do Brasil. Dirigindo-me para a porta do palácio, peguei os dois portões de ferro da entrada e os puxei lentamente e com solenidade, até que se fechassem. Naquele momento, o Catete deixaria de ser a sede do governo. Estava fechado simbolicamente. Dali em diante, a residência oficial do presidente da República seria o Palácio da Alvorada, em Brasília. Ao fechar aqueles pesados portões, eu o fiz com imensa emoção. O que fazia não era efetivamente cerrar a entrada de um palácio, mas virar uma página na história do Brasil […]. Naquele momento, outro [período] se iniciava: a era da interiorização, da posse integral do território, do verdadeiro desenvolvimento nacional”.
A cena daquela manhã do dia 20 de abril de 1960, descrita por JK em Por que construí Brasília, quando ele, dona Sarah, as filhas e dona Júlia Kubistchek se dirigiam ao aeroporto, no Rio de Janeiro, onde embarcariam no avião presidencial definitivamente para Brasília, dá início às solenidades de inauguração da Nova Capital no Brasil Central. Já em Brasília, Juscelino e a família foram para o Catetinho, onde aguardariam as festividades que começariam às 17h.
Leia maisÀs 17h30, a comitiva presidencial chega à Praça dos Três Poderes. JK se dirige ao parlatório do Palácio do Planalto, onde já o aguardavam o vice-presidente, João Goulart; Israel Pinheiro, que lhe entrega a chave da cidade; e Everardo Queiroz, que falaria em nome dos trabalhadores que construíram a cidade.
“Meus amigos e companheiros de lutas, soldados da epopeia da construção de Brasília, recebo, profundamente emocionado, a chave simbólica da cidade filha do nosso esforço, da nossa crença, de nosso amor a este País […]. Brasília só pode estar aí, como a vemos, e já deixando entender o que será amanhã, porque a fé em Deus e no Brasil nos sustentou a todos nós, a esta família aqui reunida, a vós todos, candangos, a que me orgulho de pertencer”, disse Juscelino dirigindo-se à multidão que se aglomerava para ouvi-lo diante do novo palácio presidencial.
Às 19h, JK segue para o aeroporto quando receberia o cardeal dom Manuel Gonçalves Cerejeira, pontifício de origem portuguesa, enviado pelo Vaticano, para celebrar a missa de inauguração de Brasília. Às 23h30, no altar montado em frente ao Supremo Tribunal Federal — a Catedral de Brasília ainda não havia sido concluída — o cardeal Cerejeira inicia cerimônia e, à meia noite, as abluções. Todos os sinos das igrejas, no Brasil, badalam naquele momento. Em Brasília, vindo de Ouro Preto, o mesmo sino que anunciou a execução de Tiradentes soa várias vezes.
As luzes iluminam a cidade, formando a cruz do plano de Lucio Costa. Uma cruz de madeira, vinda de Braga especialmente para aquela missa, que teria sido a mesma da Primeira Missa no Brasil na época do descobrimento, adorna a celebração. Dom Cerejeira coloca, sobre o altar, o mesmo crucifixo que Frei Henrique de Coimbra portava quando da primeira missa no Brasil, em 26 de abril de 1500. Uma radio-mensagem, gravada e transmitida dos estúdios do Vaticano, do Papa João XXIII, em português, se fez ouvir na Praça dos Três Poderes. Com a benção cristã, a cidade estava inaugurada. JK, seu construtor, deixa o templo como “O Fundador”.
Aquela noite, e todas as solenidades, celebrações e festejos que se seguiriam nos dias 21 e 22 de abril, apenas encerrariam, numa cena maior, uma sequência de “simbologias inaugurais” que marcaram toda a história da construção de Brasília. Na vontade mitológica da época, Brasília não seria apenas uma nova cidade e uma nova capital do Brasil: mas uma nova era, um novo Brasil, uma nova civilização. Na sua primeira visita ao Sítio Castanho, em 2 de outubro de 1956, JK sobrevoou o já demarcado Plano Piloto e onde ficaria o Lago Paranoá. Do alto, ele indicou onde deveriam ser construído o Palácio da Alvorada e o Brasília Palace Hotel. Nem o Catetinho havia sido edificado naquele momento.
No dia 30 de junho de 1958, numa solenidade com os primeiros convidados que passariam a frequentar a cidade em construção, foram inaugurados o Palácio da Alvorada e o Brasília Palace Hotel. Ainda naquele mesmo mês de junho seriam inauguradas a Avenida das Nações — ligando o aeroporto ao Alvorada e ao Brasília Palace — a Igreja Nossa Senhora de Fátima (a Igrejinha da 308 Sul) e 500 casas populares. Já estava pronta também a rodovia Brasília-Anápolis (130km).
Com o devido protocolo, esses pequenos grupos cumpriam um pequeno e sofisticado roteiro: beleza e organização. E não era para menos: o Palácio do Alvorada e a Igrejinha tiveram o seu impacto no mundo inteiro, desde o primeiro momento. Ao comunicar todos os passos das edificações dos monumentos e dos avanços dos planos de Brasília, JK ia divulgando e consolidando o mito e a distinção da nova capital do Brasil. Já a rodovia Brasília-Anápolis, que tinha a função essencial para o transporte de materiais e suprimentos necessários ao canteiro de obras, foi apresentada também como um símbolo da integração do país que a nova capital traria num futuro próximo.
A Novacap, por meio da Revista Brasília, passou a divulgar balanços periódicos da evolução das obras e a anunciar os trabalhos iniciais das obras dos monumentos e edifícios da Praça dos Três Poderes, como do Congresso Nacional e da terraplanagem da Esplanada dos Ministérios. A edificação das superquadras também entrou no roteiro das informações, para serem celebradas ao longo da evolução da construção da cidade.
Assim, numa imagem divulgada pela Novacap, em março de 1958, reproduzindo o plano de Lucio Costa, estavam indicadas as construções dos novos apartamentos, naquele momento, todos na Asa Sul. Identificavam-se obras nas quadras 308, 307, 305, 108, 107, 208, 207, 206, 403/404, 405/406 e 411/412. Havia ainda as casas na W3 nas quadras 704, 714, 715, 716 e as lojas comerciais das unidades vizinhas na 103, 104 e 107. Nem todas essas edificações estariam exatamente prontas em abril de 1960. Mas sua evolução integraria o cenário de visitações e celebrações coordenadas pela Presidência da República, divulgando e “inaugurando e reinaugurando” permanentemente a nova capital do país.
Um exemplo clássico desse método e estilo de JK foi a inauguração da cumeeira do primeiro edifício da 108 sul, um projeto do Oscar Niemeyer — com 456 apartamentos divididos em 11 prédios de seis andares. No dia 22 de março de 1958, ficou pronta a estrutura, o esqueleto do primeiro bloco da quadra. Juscelino, Israel Pinheiro, o governador do Rio de Janeiro, Negrão de Lima, o ministro do Trabalho, Parsifal Barroso, e o presidente do IAPB, instituto responsável pela construção da superquadra, Enos Sadock de Sá Mota, estavam lá. Na “solenidade inaugural” são relembrados os detalhes do projeto habitacional: os parques infantis, os jardins e gramados, uma escola, um gerador de eletricidade e um poço artesiano. Estava tudo ali: a cidade, sua nova estética, seu novo viver, crescer e educar. A nova nação sendo, paulatinamente, inaugurada e celebrada.
Juscelino fez mais. Fazia sempre mais! No dia 29 de junho de 1958, o Brasil disputou a Copa do Mundo com a Suécia. JK ouviu o histórico jogo com a esplendorosa vitória do Brasil, de Brasília. O Brasil vence a Suécia pelo placar de 5 a 2. Pelé aparece para o mundo. O país comemora e festeja.
De Brasília, JK parabeniza a Seleção Brasileira e o país sabe que o isolamento do Planalto Central está deixando de existir. Em julho de 1958, realiza-se em Goiânia a IV Reunião Ordinária da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. JK convidou as lideranças católicas para uma visita a Brasília. Depois de cumprir o roteiro de apresentação do projeto urbano e da monumentalidade da cidade com os líderes religiosos, JK disse a eles pedindo apoio para a nova capital: “Brasília e a Marcha para o Oeste são obras de fé”. O modernismo, a modernidade e Deus!
Em agosto de 1958, Foster Dulles, secretário de Estado dos EUA, veio ao Brasil com uma agenda sobre a Organização Pan-Americana (uma organização multilateral dos EUA que surge no início da Guerra Fria com o argumento de combater o subdesenvolvimento na América Latina). JK traz Dulles para Brasília. Faz a primeira doação do setor de embaixadas, entregando para Dulles o terreno onde seria construída a futura embaixada dos EUA. Depois leva-o para a Esplanada dos Ministérios e o convida para “apertar o primeiro parafuso da primeira estaca de aço do prédio destinado ao Ministério das Relações Exteriores no Brasil”. Naquela mesma noite ofereceu um banquete a Foster Dulles, no Palácio da Alvorada.
Na primeira semana de outubro de 1958, realiza-se, no Rio de Janeiro, o Seminário Internacional sobre Criação de Novas Cidades. Convidados por JK, os 43 participantes encerram o encontro em Brasília quando o presidente apresentou aos presentes “Brasília, a magnífica obra de arte afirmando a capacidade artística da nação brasileira”.
O ano de 1959 foi intenso na Brasília em construção. Visitaram a cidade, entre outros: Fidel Castro (Cuba), Golda Meir (Israel), o presidente da Indonésia, uma missão comercial de Nova Orleans (EUA), o primeiro ministro do Japão, o cineasta Franck Capra, o ministro das finanças da França, Antoine Pinay. André Malraux, então ministro da Cultura da França e escritor, personalidade luminosa do pós-guerra, veio à Brasília para o lançamento da Pedra Fundamental da Maison de France na futura capital. Numa das suas conferências no Brasil, Malraux pronunciou a célebre frase: “Brasília, a capital da esperança”.
Em setembro, é aberto em Brasília o Congresso Extraordinário de Críticos de Arte. Uma articulação cultural-diplomática do então notável intelectual, jornalista, modernista e desenvolvimentista Mário Pedrosa. Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Joaquim Cardozo estavam presentes, ao lado de uma plêiade de artistas, jornalistas e intelectuais do mundo inteiro. “A cidade nova e a síntese ou integração das artes, eis — senhores — o belo tema que vos congrega aqui”, disse JK ao saudar o seleto encontro.
Em 2 de fevereiro de 1960, chega a Brasília, vindo de Belém, Cuiabá, Rio de Janeiro e Porto Alegre — cidades dos extremos cardeais do país — a Caravana da Integração Nacional, atravessando o país de automóvel, numa época ainda improvável. “O Brasil está definitivamente integrado”, anunciou JK.
Na manhã de 21 de abril de 1960, começa a segunda etapa da Programação de Solenidades de Instalação da Nova Capital: o toque de Alvorada pela Banda do Batalhão da Guarda e o hasteamento da bandeira, hino nacional e o desfile militar. No Palácio do Planalto, o presidente recebeu os cumprimentos do corpo diplomático. Em seguida, a primeira reunião ministerial quando é formalizado o primeiro ato oficial no Palácio do Planalto: a criação da Universidade de Brasília.
No Palácio da Justiça, o ministro Barros Barreto instala o Poder Judiciário. Já no Congresso Nacional, com a presença de JK e João Goulart, o momento é de elogios e emoção. À tarde, no Eixo Monumental, a parada militar. Depois os desfiles de milhares de candangos, liderados por Israel Pinheiro e Ernesto Silva, com seus caminhões, carros, bicicletas, trator, a pé. À noite, duas grandes festas: nos Eixos, o povo dançou e cantou a noite inteira. No Palácio do Planalto, uma grande recepção a black-tie para os verdadeiros donos do poder e da cidade.
Sobre o tempo, o país e a cidade, um carpinteiro da época ao ser entrevistado pelo Núcleo de História Oral da UnB observou com comovente resiliência: “Era uma boa época porque a época que nós chegamos era uma época de ilusão, né? A época da esperança”
*Jorge Henrique Cartaxo é jornalista e Diretor de Relações Institucionais do IHGDF | Lenora Barbo é arquiteta e diretora do Centro de Documentação do IHGDF
Leia menos

















