Por Zé Américo Silva*
A madrugada de 10 de dezembro de 2025 será lembrada como um marco de degradação institucional. A Câmara dos Deputados aprovou o chamado PL da Dosimetria, apresentado como uma “revisão técnica” do cálculo das penas, mas que, na prática, se converteu no maior ato de complacência parlamentar com golpistas desde a redemocratização.
Ao reduzir drasticamente as sanções de quem atentou contra o Estado Democrático de Direito, a Câmara produziu um efeito jurídico direto: aliviar a situação de Jair Bolsonaro e de seus generais conspiradores, repetindo o ciclo de anistias e proteções que sempre o acompanharam desde seus tempos de medíocre capitão do Exército. A história se repete como farsa – e, desta vez, como ameaça concreta ao futuro democrático do país.
Leia maisA aprovação não foi fruto de convicção, mas de conchavos. O que se viu foi um acordo amplo, costurado no subterrâneo do Centrão, cujo objetivo real foi retirar da mesa a candidatura de Flávio Bolsonaro, lançada dias atrás como instrumento de pressão política. O PL da Dosimetria virou peça de chantagem e moeda de troca.
Seu avanço permitiu ao bloco que domina a Câmara reposicionar suas ambições para 2026, pavimentando a construção de uma nova candidatura que atenda exclusivamente aos seus interesses eleitorais e financeiros. Nada ali dialoga com o país, com a justiça ou com a sociedade. Dialoga apenas com a autopreservação de um sistema que se alimenta da própria corrosão ética.
No centro desse processo vergonhoso está o presidente da Câmara, Hugo Motta – liderança frágil, politicamente comprometida e incapaz de exercer a mínima independência institucional. A forma truculenta com que conduziu a sessão, repetindo o padrão de violência seletiva demonstrado dias antes ao mandar retirar à força um deputado que protestava, revela muito mais do que postura autoritária. Revela conveniência.
Protestos de aliados, ainda que paralisando a Casa, foram tratados com condescendência. Já manifestações da oposição receberam o peso da repressão. Dois pesos, duas medidas; duas imoralidades incompatíveis com uma democracia madura. E a Câmara se apequena junto com seu presidente.
No Senado, a tendência é igualmente sombria. O presidente Davi Alcolumbre já sinalizou disposição de atropelar o rito, acelerando a apreciação do projeto sem o devido debate constitucional. A pressa não é técnica; é política. E serve ao mesmo objetivo: aplicar um manto de indulgência sobre os condenados, sejam eles golpistas, militares traidores do juramento constitucional ou outros beneficiados colaterais da mudança legislativa. A Casa Alta parece inclinada a reiterar a desserviço que a Câmara prestou ao país.
O que está em jogo é maior do que a sorte de Bolsonaro, de um punhado de generais e de quadros políticos associados ao extremismo. O que está em jogo é a integridade da democracia, corroída por um Parlamento que legisla para si mesmo enquanto ignora os temas que realmente importam para a vida nacional. O mesmo Congresso que passa madrugadas trabalhando para reduzir penas de golpistas é o que engaveta projetos de combate à corrupção, de taxação justa dos bilionários, de regulação das fintechs predatórias, de enfrentamento às desigualdades e de responsabilização dos setores que financiam ilegalidades, inclusive o poderoso ecossistema das apostas eletrônicas que hoje irriga campanhas e parlamentares. A mensagem é explícita: proteger privilégios é prioridade; enfrentar problemas reais, não.
A madrugada de 10 de dezembro deveria envergonhar qualquer brasileiro que acredita no Estado Democrático de Direito. Diante da condução indecente das Casas Legislativas, resta à sociedade mobilizar-se. O Congresso deixou claro que não agirá em defesa da democracia; só agirá sob pressão. A resposta, portanto, não pode ser resignação.
Deve ser participação ativa, veemente, firme. O país não é obrigado a assistir passivamente à construção de uma anistia disfarçada, nem a aceitar que acordos de bastidor valham mais do que a Constituição. É oportuno lembrar que os eleitores terão em 2026 a oportunidade de renovar todos os membros deletérios da Câmara dos deputados e 54 dos 81 senadores da República.
A história registra seus dias de vergonha – e este certamente será lembrado como um dos maiores. Mas também registra seus momentos de resistência. Que a sociedade brasileira esteja à altura deste desafio.
*Jornalista
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