Por Osório Borba Neto
Mais um disparo. Mais uma democracia posta à prova. O assassinato de Charlie Kirk, sob o céu azul de Utah, não é um ponto fora da curva: é mais um elo em uma corrente de violência que acompanha os Estados Unidos desde a sua fundação. Uma democracia que se orgulha de ser “a mais antiga do mundo”, mas que, vez por outra, é ferida no coração pela mesma arma que jura proteger.
De Lincoln a Reagan: a repetição trágica
A história americana está marcada por tiros que mudaram rumos políticos. Abraham Lincoln, em 1865, tombou logo após conduzir o país para fora da Guerra Civil. John F. Kennedy, em 1963, viu seu projeto de renovação nacional interrompido em Dallas. Martin Luther King Jr., em 1968, tombou em Memphis no auge da luta por direitos civis. Ronald Reagan sobreviveu, mas também sentiu no corpo o peso de um atentado em 1981.
Leia maisNem mesmo a cultura escapou: John Lennon foi morto na porta de casa, prova de que a idolatria da violência não se restringe à arena política. O fio que une esses episódios é uma crença arraigada – de que a bala é um argumento legítimo quando as palavras falham.
O erro de Trump e a caldeira da polarização
No século XXI, a retórica tornou-se tão inflamável quanto a pólvora. Donald Trump, ao longo de sua ascensão e após deixar a presidência, escolheu conscientemente alimentar a caldeira da divisão: transformou adversários em inimigos existenciais, incentivou suspeitas infundadas sobre as urnas e normalizou a violência como linguagem política. Ao fazer isso, aprofundou o abismo entre americanos, oferecendo “as bênçãos” de um discurso que ecoa em milícias armadas e na indústria de armamentos — um lobby poderoso que transforma cada massacre em oportunidade de lucro e cada tentativa de regulação em cruzada ideológica.
Oportunismo da extrema direita: o mesmo script, aqui e lá
Não surpreende que, diante do assassinato de Kirk, setores da direita radical nos EUA — e seus ecos no Brasil — tentem capturar a tragédia para reforçar a narrativa de que a “esquerda radical” mata. É um discurso fatiado, que ignora o histórico de violência política de múltiplas matrizes ideológicas e que serve mais para inflamar do que para esclarecer. Basta observar, por aqui, o apetite de figuras como Nikolas Ferreira e outros de menor expressão que, em busca de holofotes, correm para transformar um ato isolado de loucura em prova de uma conspiração progressista.
Essa manipulação revela não só cinismo, mas um perigoso método: transformar medo em capital político, desviar o debate do verdadeiro problema – a cultura armamentista e a retórica de ódio – e apresentar a violência como culpa exclusiva do adversário ideológico.
Democracias não morrem de um só golpe
Como alertam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, democracias raramente desaparecem de um dia para o outro; elas se corroem por dentro, quando a tolerância mútua se perde e as instituições deixam de frear os instintos autoritários. O que vemos hoje nos EUA é um laboratório desse desgaste: a violência deixa de ser aberração para se tornar método, e a banalização da morte enfraquece a crença de que o conflito político deve se resolver pelo voto.
O desafio americano – e nosso
Romper esse ciclo exige mais do que lamentos. Significa enfrentar de frente a cultura armamentista, frear o lobby que a sustenta e reconstruir a ideia de adversário político como parceiro de uma mesma democracia. Enquanto a retórica da guerra interna continuar valendo mais que o compromisso com o diálogo – e enquanto oportunistas tentarem lucrar com cada tragédia –, cada tiro será mais um lembrete de que as democracias, quando descuidam de si mesmas, morrem não de velhice, mas de violência.
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