Por Eduardo Gomes de Figueiredo*
Quando os limites ao poder estatal desafiam a própria democracia
Quando Thomas Hobbes escreveu “O Leviatã” em 1651, seu diagnóstico era inequívoco: sem poder soberano capaz de impor ordem, a humanidade mergulha no “estado de natureza”, onde a vida é “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”.
O filósofo compreendia que o contrato social exige transferir parte da liberdade individual para um ente capaz de garantir segurança coletiva. Quase quatro séculos depois, Pernambuco e o Brasil vivenciam um paradoxo: a tentativa legítima de conter excessos do Estado pode estar criando vácuo de autoridade que nos empurra de volta ao caos.
Leia maisA Constituição Federal de 1988 estabeleceu sofisticado sistema de freios e contrapesos ao poder estatal. O artigo 5º consolida direitos à vida, segurança, propriedade e inviolabilidade do domicílio. Mas a Carta também determina, no artigo 144, que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública”.
Para equilibrar esses princípios, o Supremo Tribunal Federal utiliza a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), instrumento constitucional que permite ao STF intervir quando atos do poder público violam direitos fundamentais. A ADPF 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, impôs restrições às operações policiais no Rio: planejamento obrigatório, comunicação ao Ministério Público, presença de ambulâncias e câmeras corporais. A ADPF 828 suspendeu despejos coletivos durante a pandemia e estabeleceu protocolos com audiências de mediação obrigatórias. Os objetivos são legítimos: reduzir letalidade policial e proteger famílias vulneráveis.
Contudo, essas limitações criaram efeitos colaterais. No Rio de Janeiro, comunidades tornaram-se feudos do crime organizado. Facções ampliaram armamentos, incluindo drones com explosivos. As operações de outubro de 2025 expuseram a gravidade: mais de 60 mortos, fechamento do espaço aéreo, paralisação da cidade. O Estado deparou-se com estrutura criminal militarizada.
Em Pernambuco, o padrão se repete. Cabo de Santo Agostinho e São Lourenço da Mata figuram entre as dez cidades mais violentas do Brasil (Anuário de Segurança Pública 2025), com o estado na quarta posição nacional (36,2 mortes por 100 mil habitantes). O Instituto Fogo Cruzado registrou recorde no primeiro semestre de 2025: 39 vítimas de balas perdidas, 35 mortas, com crianças baleadas dobrando em relação ao ano anterior. Recife teve 159 homicídios no último trimestre, Jaboatão 61, Petrolina 50.
No campo, Pernambuco liderou invasões de terras em 2025: 20 ocorrências em quatro meses, quase metade das 53 nacionais. A ADPF 828 sinalizou que ocupações podem prosperar sem resposta célere. Proprietários relatam ouvir que “não se pode fazer nada”.
Hobbes não defendia Estado totalitário, mas forte o suficiente para garantir paz. Cidadãos, percebendo que o Leviatã não pode protegê-los, buscam seguranças privadas, blindagens, armamento civil – sintomas de perda de fé estatal. É crucial enfatizar: ninguém defende letalidade policial descontrolada. Operações que resultam em mortes de inocentes são inaceitáveis. Direitos humanos são inegociáveis.
Mas precisamos reconhecer que limites excessivos produzem resultados opostos. Quando o Estado não pode agir, o crime age. Quando a polícia não entra, facções dominam. Quando reintegrações são suspensas, invasões proliferam. A solução é aperfeiçoar controles: operações planejadas, mas eficientes; inteligência policial; protocolos que garantam direitos sem criar impunidade; presença estatal através de políticas públicas e participação social.
Estado Democrático de Direito equilibra limite e capacidade de ação. Enquanto pernambucanos temem pela vida e produtores veem propriedades invadidas, o contrato social falha. O Leviatã não pode ser tão acorrentado que se torne incapaz de cumprir sua função. Do contrário, escolhemos entre barbáries. E todos perdemos.
Por fim, esta discussão não pode ser sequestrada pela polarização política. Não se trata de agenda de direita ou esquerda. Trata-se de respeito às instituições constitucionais. A Constituição não é instrumento partidário, é pacto social que estabeleceu proteção de direitos fundamentais e responsabilidade estatal. Quando o debate constitucional vira trincheira ideológica, traímos a redemocratização e enfraquecemos instituições. O desafio exige transcender rótulos: construir Estado limitado em excessos e eficiente em funções essenciais.
*Advogado especializado em Gestão e Políticas Públicas
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