Tudo começou quando Cármen decidiu pautar o julgamento, no dia seguinte à operação policial mais letal da história do Rio, que resultou na morte de 121 pessoas e colocou o Palácio Guanabara em rota de colisão com o Palácio do Planalto.
O caso foi liberado pela relatora, Isabel Gallotti, e estava pronto para entrar na pauta desde junho, mas até então Cármen o vinha mantendo na gaveta. A decisão da presidente do TSE de finalmente marcar o julgamento na sequência da operação não só pegou de surpresa os outros ministros como acendeu o sinal de alerta no entorno de Castro e Bacellar, que passaram a falar em oportunismo.
“Isso é preocupante”, afirmou um ministro do TSE, que considerou “muito ruim” o agendamento logo após a operação policial no Rio. “Aparenta oportunismo político.”
Antes mesmo que a tropa de Castro em Brasília entrasse em ação, porém, a própria Gallotti abordou Cármen na sala de togas, onde os ministros costumam lanchar, conversar antes das sessões e acertar estratégias para os julgamentos.
Segundo apurado pelo Globo, Gallotti se mostrou incomodada com o momento político para a análise do caso. A relatora então sugeriu duas possibilidades: simplesmente adiar o início do julgamento ou suspendê-lo após a leitura do voto, já que Gallotti deixa o TSE no próximo dia 21, quando termina o seu mandato.
Mas Cármen insistia que o julgamento deveria prosseguir e sem interrupções, o que chamou a atenção de colegas: toda a pressa que a presidente não teve desde junho para pautar, ela demonstrava agora para definir a situação do governador.
A tensão entre as duas só diminuiu, segundo relatos, quando o ministro Antonio Carlos Ferreira entrou na conversa e avisou que pediria vista, como acabou ocorrendo. Pelo regimento do TSE, Antonio Carlos tem até 60 dias para devolver o processo, o que pode fazer com que o caso só volte à pauta do tribunal em fevereiro, já que os prazos processuais são congelados durante o período de recesso de fim de ano.
A solução proposta por Antonio Carlos permitiu a Gallotti ler o voto – que foi duro, pela cassação de Castro e Bacellar e a declaração de inelegibilidade dos dois — e ainda favoreceu a estratégia das defesas.
Castro, Bacellar e o ex- vice-governador Thiago Pampolha – que deixou o cargo para assumir o cargo de conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio – são acusados de abuso de poder político e econômico no chamado “escândalo do Ceperj”.
No caso, revelado pelo UOL em 2022, descobriu-se a existência de uma “folha de pagamento secreta” do governo do Rio, com 20 mil pessoas nomeadas para cargos temporários no próprio Ceperj e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), incluindo aliados e cabos eleitorais do governador.
Timing
O entorno de Castro aposta em uma série de pedidos de vista para empurrar o desfecho do julgamento quando o ministro Kassio Nunes Marques já tiver assumido a presidência do TSE. Indicado ao STF por Jair Bolsonaro, Nunes Marques é um ministro com mais trânsito na classe política, mais próximo de lideranças do Centrão e, no mapa de votos, considerado mais inclinado a salvar Castro – ou seja, é oposto de Cármen, que deixa o comando do tribunal em junho do ano que vem.
“Qualquer momento do julgamento vai ser ruim a partir de agora”, disse ao Globo um ministro do TSE ouvido em caráter reservado. Para uma ala do tribunal, os ministros terão de “escolher o mal menor”, considerando as consequências políticas do caso, que se terminar com a cassação deverá levar à realização de novas eleições no Rio a menos de um ano do pleito marcado para outubro do ano que vem.
Terceiro maior colégio eleitoral do país, o Rio nunca viu um governador no exercício do mandato ser cassado pelo TSE.
Pressão
Diante da decisão de Cármen, políticos próximos a Castro passaram a procurar os ministros e aliados pedindo a suspensão do julgamento – um lobby que teria reunido do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil) ao prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD).
De outro lado, pelo menos dois ministros do STF e políticos ligados ao governo pressionaram integrantes do TSE para antecipar o voto e já formar um placar pela cassação do governador, mesmo com o pedido de vista.
Além disso, os advogados de defesa – uma espécie de “força-tarefa” jurídica formada por seis ex-ministros do TSE – também acionaram seus contatos na Corte para tentar convencer os ministros a empurrar a definição do processo mais para frente.
Em meio à tensão que se estabeleceu dentro e fora do tribunal, as defesas ainda tentaram uma última jogada: uma questão de ordem que, se aceita, poderia levar ao arquivamento do caso.
Ao longo dos dois dias de intensa peregrinação por gabinetes e conversas de pé de ouvido, todos foram informados de que prevaleceria a suspensão do julgamento, que a questão de ordem seria descartada e que nenhum ministro anteciparia o voto.
Constrangimento no plenário
Mas o mal-estar no TSE não ficou restrito aos bastidores, antes da sessão. Durante, também houve diversos momentos de incômodo e constrangimento no plenário.
Primeiro com Cármen Lúcia, por sugerir que os advogados dos réus tivessem, cada um, direito a apenas dois minutos de sustentação oral – o Ministério Público, autor de uma das ações, teve direito a dez.
Ao final, depois de diversas partes desistirem de falar para que os advogados tivessem um pouco mais de tempo, as defesas de Castro e Bacellar tiveram 7 minutos e 30 segundos. O de Pampolha teve cinco. O processo reúne ao todo 12 réus, entre candidatos eleitos e secretários de Castro.
A postura da relatora, Galloti, também causou incômodo.
A ministra só distribuiu o voto aos outros seis integrantes do TSE, impresso em um envelope, durante a própria sessão, em uma estratégia para impedir vazamentos. Na prática, a decisão de não compartilhar antecipadamente o inteiro teor do voto não permitiu que os ministros estudassem os argumentos, ainda que a conclusão de Gallotti já fosse prevista por todos.
Além dos ministros, também recebeu o voto durante a sessão o vice-procurador-geral eleitoral, Alexandre Espinosa, que no caso não atua apenas como representante do Ministério Público e “fiscal da lei”, mas também é autor de um dos recursos pela cassação.
Isso levou o advogado Fernando Neves, responsável pela defesa de Castro, a reclamar e pedir “tratamento isonômico”: que, assim como o vice-procurador geral eleitoral, Alexandre Espinosa, os advogados dos réus também pudessem ter acesso ao inteiro teor do voto, já que parte dele havia sido lida, mas outros trechos não.
Gallotti, porém, respondeu que os advogados poderiam transcrever o voto dela ouvindo a sessão pelo YouTube. “Foi uma situação constrangedora e a resposta da Isabel foi grosseira”, criticou um colega da ministra.
Durante a leitura do voto, que se estendeu por quase duas horas, a ministra chamou de “Marcelo Frouxo” o presidente da Embratur, Marcelo Freixo, autor de uma das ações, e errou repetidas vezes o sobrenome de “Pampolha”, chamado por ela de “Pamplona”.
Ao final, defendeu até mesmo a cassação do mandato de Pampolha, mesmo ele tendo deixado o cargo em maio deste ano para assumir uma vaga de conselheiro no Tribunal de Contas do Rio de Janeiro – e, por isso, só podendo ser punido com inelegibilidade (algo afastado pelo Ministério Público) ou multa. Depois, a ministra se corrigiu e pediu desculpas.
Como o mandato de Gallotti no TSE termina no fim deste mês, quando o julgamento de Castro for concluído, ela não vai estar mais na Corte Eleitoral.
O que diz o TSE
Procurada, Gallotti não se manifestou. O TSE informou que o voto da relatora será “disponibilizado com o final do julgamento, quando será proferido o acórdão pelo Tribunal Superior Eleitoral”.
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