Nascido de uma família de produtores e agricultores por parte de pai e de mãe, ele aprendeu cedo como pesavam as desigualdades. O pai, seu Cavalcanti, dono de sítios, a quem era muito apegado, quando ele era criança, apontou, dentre os amiguinhos com quem brincava, para um deles e cochichou no seu ouvido: “aquele também é seu irmão”. Foi o primeiro filho a chegar em casa e contar “eu tenho um outro irmão”, assunto que os outros já sabiam mas não comentavam por causa da mãe, magoada com a situação.
Com esse gesto, ele transformou o novo irmão num amigo de aventuras e muitas conversas e, quando adulto — com sua casa, esposa e filhos —, terminou por incluí-lo de vez e com muito orgulho na família, inclusive sendo cumprimentado por dona Conceição, a mãe, que entendeu, no final das contas, que o meio-irmão dos filhos não tinha nada a ver com a pulada de cerca do marido. Esse é só um exemplo do seu temperamento. Foi assim em todos os aspectos da vida. Orientou os filhos a distinguirem o que é certo do errado, a reconhecer quem tinha de ser reconhecido e também a que cobrassem sempre por seus direitos, evitando injustiças.
Ainda criança, fazia discursos dizendo que iria ser advogado quando crescesse. E era tão estudioso que a mãe o colocou para estudar o ensino médio, primeiro, num seminário, depois, em Vitória de Santo Antão. Por fim, no Recife, onde fez o curso clássico e passou no vestibular. Na Faculdade de Direito, nos anos 60, um novo mundo se abriu para ele, em meio à política estudantil, os livros de filosofia e literatura universal e o momento de ebulição no país.
Foi presidente do Diretório Acadêmico. Num período turbulento da sua passagem, quando a mãe de Che Guevara, dona Celia Guevara, esteve no Recife, foi escolhido pelos colegas para fazer discurso de saudações a ela, homenageando o seu filho. Só para resumir o clima quente daquele dia: as luzes da faculdade foram apagadas pela direção para evitar a homenagem e os estudantes a realizaram assim mesmo, usando velas.
Depois, houve um período em que os anos ficaram duros para todos. Ozair foi trabalhar na iniciativa privada, casou, concluiu o curso de Direito e voltou a morar em Vertentes, porque tinha chegado o momento da vida tão aguardado: de advogar na sua terra e adjacências. Tinha clientes de Limoeiro, Belo Jardim, passando por Surubim, Santa Maria do Cambucá, Vertentes, Santa Cruz do Capibaribe, Toritama e outros municípios próximos até chegar na divisa de Pernambuco com a Paraíba. Para alguns, muitas vezes trabalhava pro bono.
Fez seu escritoriozinho no quarto que ficava na frente da casa, colado à sala de estar, e virou muitas noites na máquina de datilografia escrevendo petições, processos, pedidos de habeas corpus e o que mais tivesse pela frente ao lado da esposa, Geralda, também advogada. Os dois deixavam os filhos com as tias e a avó e passavam dois a três dias da semana viajando interior afora. Percorrendo fóruns, fazendo júris, tendo audiências, protocolando petições ou fazendo registros em cartórios, num tempo em que não existia a internet e esse tipo de providência tinha de ser feito presencialmente.
Alguns anos depois, foi chamado para ser superintendente do Sistema Penitenciário do Estado. E aí foi um período em que deixou a família louca, porque durante os sábados pegava a menina, de 8 anos, e o menino, de 6 anos, e os levava para visitar os presídios. Dizia que só poderia saber se o que pedia estava sendo bem feito, ouvindo dos próprios detentos. Chegava lá, embora sempre com um olhar atento aos filhos, que ficavam do lado ou brincando ao redor, e perguntava: “Como vocês estão sendo tratados aqui? A comida que lhes servem é boa? Vocês têm tido assistência disso ou daquilo? Tem havido muita briga entre os internos? ” Argumentava que uma prova de suas intenções e de que confiava neles, era que tinha ido ali levando os próprios filhos. Dava essas incertas sem avisar a ninguém e sempre afirmou que as conversas lhe deram grande aprendizado. Muitos desses, péssimos para os filhos, a quem impedia de chegar em casa tarde da noite quando adolescentes, por causa do que alegava ter ouvido dos presidiários.
Até o fim da vida, contava emocionado sobre o dia em que entrou num prédio, no centro do Recife, e o porteiro veio animado falar com ele: “Dr. Ozair, lembra de mim? Eu sou fulano, conheci o senhor quando estava preso e o senhor procurava saber como eu estava, me deu conselhos. E eu tive motivos para estar lá, doutor, fui um jovem delinquente. Hoje sou casado, sou pai e trabalho aqui, como porteiro”. Para resumir, a conversa resultou num almoço no domingo seguinte que Ozair ofereceu para o rapaz e a família em casa. Ele dizia que nunca iria se esquecer desse reencontro e que isso sim consistia na verdadeira ressocialização de um cidadão.
Com os amigos e conhecidos, Ozair abria as portas de casa. Com a família, escancarava. Perdeu as contas dos primos e primas que recebeu para temporadas que duraram poucos dias e outras que duraram meses. Dizia que seu lar era o lar de todos, sem exceção, mesmo que isso deixasse os filhos muitas vezes sem quarto, ou tendo de dormir em colchões improvisados no quarto dele e da mulher. Uma senhorinha que trabalhou muitos anos com a família, dona Lúcia, toda segunda-feira resmungava irônica: “como fica a programação da pensão esta semana? ”. Ele ria e nada dizia, mas sabíamos que gostava de ouvir aquilo.
Ozair também não tinha apego nem por livros nem por objetos que poderiam ser comprados facilmente em outro momento. Livro, se tivesse interesse em alguns, era melhor não o emprestar, porque ele doava para outra pessoa assim que lesse. Ou no meio de uma conversa ou então porque procurava a pessoa e dizia “sei que você precisa dessa leitura”. E depois procurava o dono e confessava: “Sinto muito, se quiser eu pago pelo livro, mas não posso lhe devolver mais porque passei adiante. Precisei fazer isso”. Sempre foi assim.
Da mesma forma, quando via alguém em dificuldade, tentava ajudar como podia. E se não podia, perguntava: “O que você sabe fazer? Sabe costurar? Se tiver uma máquina de costura, vai poder fazer uns clientes e colocar um dinheirinho dentro de casa? ”. E dessa forma, deu várias máquinas de costura da minha avó e da minha mãe, deu batedores e liquidificadores, que tirou diretamente da cozinha para as pessoas terem equipamentos que lhes permitissem fazer sucos e vitaminas, de forma a preparar e vender na feira para se sustentar. E assim por diante. Deu brinquedos dos filhos (que depois, com dor na consciência, substituiu por outros novos, ao vê-los chorando), deu bicicletas dos filhos e por aí vai. A mulher dizia no fim da vida que só não tinha dado as plantas do jardim, mas se enganou: ele também doou algumas, neste caso, como cortesia.
Veio a Prefeitura. Foi um dos primeiros prefeitos a instituir um plano de educação para o município. Mas não foi só a educação. Procurou a antiga Fidem, quando candidato, para estudar a cidade, saber suas viabilidades econômicas, os polos que demandavam maior investimento. Tudo coisa simples e corriqueira hoje, mas que nos anos 70, de governadores e prefeitos de capitais biônicos, em que a influência dos grandes políticos na eleição dos prefeitos de municípios do interior era muito maior, não era comum. Esse tipo de estudo prévio de um município ficava a cargo dos governos estaduais.
Voltou a governar Vertentes mais de dez anos depois, em 1993. Não são raros os vertentenses, hoje formados, que lembram quando ele ia de escola por escola para entregar fardas, cadernos e livros aos alunos. Fiscalizava as salas de aula, via de perto as condições de cada escola, olhava para eles e dizia: “estudem”.
Um episódio em especial, é considerado dos mais marcantes da sua vida. Num período de crise econômica no País, em que ele era o prefeito, houve uma onda de saques no interior de Pernambuco. A seca estava maltratando as cidades, as pessoas não estavam conseguindo ter um roçado e os agricultores se reuniram para entrar em muitos comércios nos municípios e tirar produtos para sobreviver. Menos em Vertentes. Ozair reuniu lideranças políticas e pequenos empresários. Conversou com eles e os convenceu que, pelo andar da carruagem, Vertentes seria uma das próximas cidades a serem atacadas, que a prefeitura se munir com policiamento para enfrentá-los, como muitos já tinham pedido, era a pior opção e ele não faria isso.
Explicou que essas pessoas não eram bandidos. Estavam famintas, sem perspectiva de vida, muitos tinham famílias e filhos e tinham razão nos seus propósitos. E fez uma negociação na qual todos doaram diversos produtos de seus estabelecimentos, lojinhas e casas (pois até donas de casa e pequenos comerciantes de sulanca ajudaram). Chamou o padre pedindo para entrar em contato com a pastoral da terra mais próxima, para que passasse o recado a esses grupos que os estava aguardando. E eles foram recebidos por boa parte da população da cidade num espaço repleto de gêneros alimentícios, cobertores e vários produtos para sua utilidade. Saíram de lá agradecidos e receptivos, sem qualquer tipo de violência.
Assim, seguiu a vida. Teve muitas vitórias e muitas derrotas na política. Fatos que, conforme dizia, só o ajudaram a ser mais forte como pessoa. Sempre ao lado do filho, Cavalcanti, que adulto, virou também advogado, político e um parceiro incansável. Foi ainda diretor do Instituto de Pesquisa Agropecuária de Pernambuco, procurador da Fazenda de Pernambuco e ocupou outros cargos que não é possível contar num único texto. Tinha muita alegria e muita brabeza naquele 1,89 de altura e no vozeirão. Tinha, também, muita preocupação em fazer o melhor e fazer bem feito para as pessoas e para mudar a realidade das pessoas. Mas tinha, principalmente, muito acolhimento e propósito!
Recentemente, Theo Olivetto, filho do publicitário Washington Olivetto, falecido há poucos dias, disse que o pai era suavemente intenso. Lembrou um pouco Ozair. Ele conseguia ser tudo isso ao mesmo tempo: intenso, brabo, suave, carinhoso, agoniado e, também, muito forte em suas convicções e ponto de apoio de todos nos momentos mais difíceis das suas vidas. Uma pessoa que, se estivesse por aqui, estaria comemorando seus 85 anos com garra, brigando pelos direitos, cheio de ideais e com pique de fazer inveja a muitos jovens. Certamente, por tudo isso, uma pessoa que veio ao mundo para ficar na história.
*Hylda Cavalcanti é jornalista e filha de Ozair. José Ozair Cavalcanti Neto é economista e, por óbvio, neto de Ozair. Os dois resolveram, neste texto, escrever sobre ele na terceira pessoa pela primeira vez na vida porque acharam que seria uma outra forma de homenageá-lo, mostrando sua trajetória com certo distanciamento.
Leia menos