É bem verdade que a expressão “Cidade Maravilhosa” já era cantarolada nos versos de uma marchinha de carnaval de 1904. Coelho Neto, também, já havia usado o conceito carnavalesco em uma de suas crônicas publicadas no jornal A Notícia, em 1908. Mas não veio seguida de versos, não era em francês, o nosso cronista não morava em Paris — aquela outra cidade maravilhosa — e menos ainda era neto de Victor Hugo.
Particularidades à parte! Joaquim Murtinho, prócer da República, havia sido ministro da Indústria, da Viação e Obras Públicas do governo de Prudente de Morais; e das Finanças, no governo de Campos Salles. Antes da posse de Salles, Murtinho o acompanhou a Londres onde negociaram, com os Rothschild, o bilionário empréstimo que reorganizou as finanças do país, em decomposição acelerada desde o início da República e o “encilhamento” de Rui Barbosa.
Joaquim Murtinho, engenheiro e médico, introdutor da homeopatia no Brasil, havia cuidado da saúde da princesa Isabel, do marechal Deodoro, de Campo Salles e de Prudente de Morais. Entre festejadas curas milagrosas e algumas funções públicas, adquiriu frondosos latifúndios em Mato Grosso, Minas Gerais, Goiás e no estado do Rio de Janeiro — neste, por algum acaso topográfico, ele fez construir, enquanto ministro, nas margens das suas terras, providenciais estradas de ferro. Reza a lenda que, após o acordo com os Rothschild, em Londres, ele e o Brasil ficaram mais ricos e prósperos.
Laurinda Santos Lôbo, sobrinha de Joaquim Murtinho, por esses mistérios do destino, herdou do tio, falecido em 1911 aos 63 anos, 78 cachorros, a fortuna e o famoso Palacete Murtinho — que ela rebatizou como Palacete Santos Lôbo —, em Santa Tereza, de onde o olhar poetisa e contempla a Baía da Guanabara.
Aos 33 anos, não exatamente bonita, mas extraordinariamente sedutora, cuidou de ser o “novo” Rio de Janeiro, mesmo com seus ranços e cacoetes do Império já quase esquecido. Redirecionou o seu apático marido, Hermenegildo Santos Lôbo, para algum espaço da casa e fez e refez os seus e os encantos do Palácio, incluindo seu elegante e discreto romance com Estácio Coimbra, então governador de Pernambuco e futuro vice-presidente da República.
Diretora informal da programação do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, cuja obra ela acompanhou e, em grande parte coordenou, desde 1905 até a sua inauguração em 1909, fez dos seus salões em Santa Teresa uma extensão dos grandes espetáculos. O pianista Arthur Rubinstein, os tenores Enrico Caruso, Tito Schipa, Giacomo Lauri-Volpi e Beniamino Gilgli; o compositor e maestro Richard Strauss, a soprano Claudia Muzzo; as artistas brasileiras consagradas no exterior, como a pianista Magdalena Tagliaferro e as sopranos Vera Janacópulos e Bidú Sayão. Todos se apresentaram nos salões de Laurinda.
Da prata da casa, eram habitués João do Rio, Villa-Lobos, Graça Aranha, Afrânio Peixoto entre tantos outros. “A marechala da elegância, a princesa dos mil vestidos”, Laurinda representava a estética e o estilo da grande reforma urbana de Pereira Passos (1902-1906) — inspirada na mesma reforma urbana de Paris (1852-1870), realizada pelo barão Haussmann — e a grande campanha sanitária conduzida por Oswaldo Cruz.
Para ela, Paris, onde tinha um apartamento na Place de La Madeleine, estava logo ali, depois da praia que abraçava a nova Avenida Beira-Mar, onde os mares gelados da França, acompanhando a brisa, vinham se aquecer em Copacabana. E Buenos Aires, onde tinha amigos, um pouquinho depois, não muito longe, da promissora Praia de Ipanema. Laurinda era a maravilha, como a Cidade Maravilhosa da sua amiga Jane Catulle-Mendès.
Na sua mensagem ao Congresso Nacional, de maio de 1896, o então presidente Prudente de Morais, inicia um longo período de esquecimento do Estado em relação a nova capital. “Os serviços da comissão incumbida de escolher o local para a futura capital da União, na área, já demarcada, no planalto central da República, segundo o disposto no Art. 3 da Constituição, não puderam ter grande desenvolvimento no ano findo pela deficiência da verba votada, o que determinou a suspensão dos trabalhos de campos nos últimos meses do exercício… Foi dispensado o pessoal civil da comissão, continuando os militares com os de escritório, sem outra remuneração além das de suas patentes”. Na mensagem de 3 maio de 1897, Prudente de Morais, arguindo falta de verba, sentencia: “… Foi extinta a Comissão de estudos da nova capital”.
O advogado e cafeicultor paulista, Campos Salles, assumiu a presidência da República em 15 de novembro de 1898. Era o quarto presidente republicano e o segundo eleito pelo voto direto. A economia do país estava insolvente. Sem alternativa, mesmo antes de assumir, Salles negociou, com os Rothschild, a moratória e um novo empréstimo de 10 milhões de libras. Seu governo transcorreria sob uma austera e impopular política fiscal. Para impor tamanha restrição e conter suas consequências, Campos Salles elaborou sua famosa Política dos Estados — conhecida como a Política dos Governadores.
As grandes oligarquias, com domínios e autoridade absoluta sobre todos os Poderes locais, controlavam os governos estaduais. Em contrapartida, ofereciam a maioria ao governo federal no Congresso fraudando as eleições e impedindo a posse de parlamentares da oposição por intermédio da famosa Comissão de Poderes da Câmara dos Deputados.
“A melhor educação é a que entra pelos olhos. Bastou que, deste solo coberto de baiucas e taperas, surgissem alguns palácios, para que imediatamente nas almas mais incultas brotasse de súbito a fina flor do bom gosto: olhos, o que só haviam contemplado betesgas, compreenderam logo o que é a arquitetura…E [eu], intimamente, invejava a sorte dos que estão agora nascendo, dos que vão viver numa cidade radiante — quando eu, e os da minha geração, pela estupidez e pelo desleixo dos enfunados parlapatões que nos governaram, tivemos de viver numa imensa pocilga de dois mil quilômetros quadrados, como um bando de bácoros fuçando a imundice”. O texto do poeta Olavo Bilac, de 1904, publicado na Gazeta de Noticias, expressa bem o impacto das reformas empreendidas pelo prefeito do Rio, Pereira Passos (1902-1906) no governo de Rodrigues Alves (1902-1906).
O Rio insalubre, epidêmico, monárquico, colonial, impróprio para ser a sede do governo, transformava-se numa cidade moderna, contemporânea, europeizada. Claro, jamais conseguiu esconder ou aplacar o que sempre tivemos de injusto e cruel! Depois da extinção da Comissão Cruls pelo presidente Prudente de Morais (1894-1898), da política fiscal austera do presidente Campos Salles (1898-1902) e seu pacto político com os governadores e das grandes reformas urbanas da cidade do Rio de Janeiro e da modernização do seu porto, empreendidas por Rodrigues Alves, a decisão constitucional da mudança da capital perdeu densidade. Ficou restrita a isolados debates e propostas no Parlamento e em algumas publicações, sem maiores repercussões ou interesses.
Até mesmo o engajado deputado, na Constituinte republicana, Lauro Muller, posteriormente poderoso ministro de Viação de Obras Públicas no governo Rodrigues Alves, tornou-se indiferente ao tema.
Depois da extinção da Comissão em 1897, o Planalto Central volta a ser tratado, em 1904, em artigos de Medeiros de Albuquerque, em A Notícia. Em dezembro de 1905, agora senador, Nogueira Paranaguá faz um longo discurso defendendo e historiando a ideia e a decisão constitucional da mudança da capital. Seu projeto em tramitação no Senado que solicita providências para a execução do Art. 3 da Constituição, sequer obtém parecer nas Comissões.
Em 1908, o engenheiro A. Leyret, com Jacinto Pimentel e Teixeira Lopes Guimarães, requereu ao Congresso Nacional “o privilégio para a construção da Capital, mediante a concessão de determinados favores, como exploração por 90 anos, de luz, esgotos, água…etc.”
Em retribuição, os requerentes elaborariam o projeto urbano e edificariam os palácios e edifícios administrativos. Como os empresários não comprovassem possuir os recursos necessários, a proposta não prosperou. Em 1910, Antônio Martins de Azevedo Pimentel, ex-integrante da Comissão Cruls, publica a monografia Histórico da mudança da capital federal para um sítio do interior do Brasil, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
No seu livro Provocação e Debates, de 1910, Silvio Romero critica os gastos nos “afamados embelezamentos do Rio”. Aqueles valores, segundo ele, seriam suficientes para as edificações da nova capital no Planalto Central do Brasil. O deputado Eduardo Sócrates, na sessão do dia 6 de setembro de 1911, em pronunciamento na Câmara dos Deputados, pede providências para a mudança da capital. Só em 1917, com a publicação da revista A Informação Goyana, teremos o início de um novo ciclo de reflexões sobre a importância da nova capital no Planalto Central do Brasil.
“O Rio insalubre, epidêmico, monárquico, colonial, impróprio para ser a sede do governo, transformava-se numa cidade moderna, contemporânea, europeizada. Claro, jamais conseguiu esconder ou aplacar o que sempre tivemos de injusto e cruel!”
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