Por Mauricio Rands*
Vivemos reescrevendo o próprio passado. O sapiens somos bam-bam-bans em narrativas. Desde os caçadores e coletores antepassados, quando nos recolhíamos às cavernas para descansar, comer e nos proteger. Frágeis que somos, sempre atenuamos nossa fragilidade por meio da linguagem. Essa poderosa que nos impele a construir mitos. E a mentir muito.
Estórias que iniciam por alguma conexão com a realidade facilmente descambam para ficções. Que nossos cérebros são estruturados para nelas acreditar. Uns mais, outros menos. Mas quem de nós não “remodelou” o que se passou em nossas vidas? O maior mentiroso é sempre aquele que acredita na própria ficção. Feito o amigo da juventude que, certo dia, para impressionar a menina, de repente animou-se a reinventar dias que teria passado na Inglaterra correndo nas pistas da Fórmula 3, mas que tinha convite para correr na Fórmula 1. O Brasil pode ter perdido um novo Ayrton Sena.
Leia maisComo a vida é dura e curta, essa capacidade nos impele a enfrentá-la com ânimo. De outro modo, muito do que vivemos pareceria inútil. Crer nas próprias idealizações do presente requer reinterpretar o passado. Como já nos advertia Gabriel Garcia Marques, em seu “Viver para contar”, “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” Por isso, a História, feita das nossas estórias, é ela própria uma ficção. Como me recorda Diego, recém-licenciado nessa ciência da fascinante narrativa do passado.
Lasca é saber que essa grande ficção não é criada de forma neutra. Assim como os modelos de linguagem da inteligência artificial não são neutros, a grande dama ficcional também não o é. Os fatos registrados foram-no, o mais das vezes, objeto da curadoria dos grupos dominantes. Os registros dos destituídos de poder são sempre mais escassos. E mesmo quando existem, são enquadrados nas molduras dos curadores. Os que tinham alguma forma de poder.
Em 1989 Eric Hobsbawm escreveu brilhante ensaio sobre a Revolução Francesa, quando, em seus 200 anos, ela passou a ser reinterpretada por uma certa ideologia revisionista (“Ecos da Marselhesa”). Então, alguns de seus intérpretes pretendiam reduzir-lhe o alcance transformador. O que induziu Hobsbawm a sugerir que procurassem investigar como a revolução foi percebida pelos contemporâneos. Talvez aí esteja uma chave para diminuir os subjetivismos.
Quando viajei a convite do Governo Alemão para uma imersão em suas instituições, voltei bem impressionado com a grande obra de reconstrução que o povo alemão foi capaz de fazer depois da 2ª Guerra. A catarse sob a liderança lúcida e equilibrada de Adenauer. A criação de instituições democráticas através da Lei Fundamental de 1949. Como bem descreveu Kissinger no capítulo do seu “Leadership” dedicado a Adenauer. Ao ler John Kampfner, um inglês que trabalhou dez anos em Berlim como correspondente do Financial Times (“Why the Germans Do it Better”) tive reforçada essa avaliação positiva. Para algum tempo depois, ser contraditado pelo primo Rhandau, que me narrou algumas de suas experiências contraditórias nesses oito anos em que lá vive.
Em seu mestrado na Universidade de Bamberg, imprimiu o olhar versátil e criativo próprio dos brasileiros a um trabalho de consultoria a uma poderosa rede de supermercados que recorreu à universidade para sua reestruturação gerencial. Seu projeto foi o escolhido e adotado pela empresa. Celebrado. Como já havia acontecido com outra consultoria por ele prestada. Desta feita, um projeto também de reestruturação gerencial para a Universidade de Aachen. Pouco depois desses êxitos intelectuais e profissionais, com seu biotipo brasileiro não-ariano, foi “convidado” a se retirar de uma loja.
Rhandau e Kampfner, dois estrangeiros, perceberam a mesma realidade de maneiras diversas. Narrativas. Assim é se lhes e nos parece. Mas que a realidade existe, essa parece ser uma narrativa difícil de nela descrer.
*Advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
Leia menos