O governo Lula deu espaços estratégicos para um grupo ligado a Jorge Paulo Lemann influenciar decisões administrativas e financeiras na área de educação. Criada há menos de um ano, a MegaEdu, ONG financiada pelo empresário, fechou acordo com o Ministério da Educação (MEC) para opinar sobre conexão de escolas públicas à internet e, ao mesmo tempo, foi colocada em um conselho do Ministério das Comunicações que define parte dos cerca de R$ 6,6 bilhões que serão destinados para a conectividade de estudantes.
Quem levou a MegaEdu para o ministério foi a secretária de Educação Básica, Katia Schweickardt. Até semana passada, ela constava como integrante do comitê de especialistas do Centro Lemann, outra entidade do empresário. O nome dela foi retirado após o Estadão questionar o MEC sobre a ligação das duas partes do acordo com Lemann. As informações são do Estadão.
Leia maisNa terça-feira, 26, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai lançar a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas. O plano, anunciado como um dos maiores projetos na área social do governo, teve participação da MegaEdu. A cerimônia foi marcada às pressas e o convite distribuído na sexta-feira, 22, no fim do dia. Os representantes das maiores operadoras do País só receberam o convite noite de sexta, o que não é usual.
Além de atuar no MEC e no Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), onde estão 40% dos recursos que o governo estima investir até 2026, a ONG também está sendo chamada para opinar sobre o uso de R$ 3,1 bilhões de dinheiro privado que as operadoras de telefonia foram obrigadas a investir para arrematar faixas do leilão do 5G.
A MegaEdu diz não haver conflito de interesses. A Fundação Lemann afirma que a ONG tem reconhecimento e legitimidade para atuar junto ao governo federal. O MEC defende a parceria e não comenta a ligação com o empresário.
Um dos estudos da MegaEdu já foi aproveitado pelo governo para uma proposta de ampliar o número de escolas atendidas com conexão à internet até 2024, ano eleitoral. Mais unidades seriam atendidas, porém parcialmente. Isso porque, para atingirem mais pontos, o plano é retirar recursos que estavam previstos para treinamento de professores e para compra de computadores. O estudo apontou quais escolas precisam de cada tipo de conexão.
Em meio a dificuldades para criar novos investimentos públicos e a um ano das eleições municipais, levar internet para os alunos País afora tornou-se um “pote de ouro” para o governo federal, e uma área cobiçada pelo Centrão, por empresas e por organizações do setor. Como mostrou a Coluna do Estadão, o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, tenta emplacar um aliado político na presidência do órgão que executa os projetos de conectividade do leilão do 5G e que tem R$ 3,1 bi em caixa.
Os R$ 6,6 bilhões de recursos para conectividade virão do Fust (R$ 2,74 bilhões), do Grupo de Acompanhamento do Custeio a Projetos de Conectividade de Escolas (Gape), previsto pelo Leilão do 5G (R$ 3,1 bilhões) e ainda de remanescentes de lei aprovada pelo Congresso que prevê recursos para os Estados (R$ 800 milhões).
Pelos dados do último Censo Escolar, das 138 mil escolas públicas do País, 21 mil declararam ao governo não ter internet. A Região Norte lidera o número de estabelecimentos de ensino sem conexão (9.692), seguida de Nordeste (9.511), Sudeste (2.105), Sul (406) e Centro-Oeste (191).
Cúpula da MegaEdu trabalhou na Fundação Lemann
Formalmente aberta em 4 de outubro de 2022, a MegaEdu é diretamente ligada à Fundação Lemann – organização fundada pelo bilionário brasileiro para apoiar a educação. A associação oferece “consultoria técnica” para secretarias de educação e afirma trabalhar para levar internet de alta velocidade para todos as escolas públicas do País. A cúpula da ONG trabalhou na fundação que leva o sobrenome do empresário e o telefone registrado pela MegaEdu na Receita Federal é o mesmo da entidade.
Em nota ao Estadão, a Lemann informou que a MegaEdu “recebe o nosso apoio, que garante a sustentabilidade institucional e a independência da organização”.
As portas do governo para a ONG foram abertas por meio de um acordo de cooperação com a Secretaria de Educação Básica, comandada pela professora Katia Schweickardt. Ela integrou o comitê de especialistas do Centro Lemann – outra entidade aberta pelo empresário para apoiar a educação.
O Centro Lemann foi fundado em 2021 após aproximação entre Jorge Paulo Lemann e o ex-prefeito de Sobral (CE), Veveu Arruda – a cidade cearense é considerada um exemplo de política educacional no Brasil. Arruda é marido da secretária-executiva do Ministério da Educação, Izolda Cela, número 2 do ministro Camilo Santana, ex-governador do Ceará pelo PT. Izolda era cotada para assumir o ministério, mas foi alvo de pressão de uma ala do PT que não aceitava justamente o fato de Izolda ser apoiada pela Fundação Lemann.
A MegaEdu também conseguiu espaço em outra área cobiçada em Brasília. A partir de indicações de outras entidades, o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, escolheu Cristieni de Castilhos, CEO da MegaEdu, para o conselho gestor do Fust. Ela é uma das 13 integrantes do comitê que prevê até R$ 2,74 bilhões para projetos de conectividade das escolas públicas, favelas e áreas rurais. Castilhos entrou no conselho pela “cota” da sociedade civil e tem mandato até 4 de maio de 2026. Deputado federal licenciado pelo União Brasil, Juscelino está no ministério pela cota do Centrão.
Os valores do Fust serão repassados a empresas de telecomunicações e a outras entidades com condições de juros diferenciadas. Atualmente, 1,6 milhão de estudantes não têm acesso à internet no País, segundo o Censo Escolar do ano passado.
Em fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou Lemann no caso das Americanas. O empresário é um dos maiores acionistas da companhia, que entrou em recuperação judicial após um escândalo contábil vir à tona em janeiro.
“Esse Lemann era vendido como o suprassumo do empresário bem-sucedido. Era o cara que financiava jovens para estudarem em Harvard para formar um novo governo. Falava contra a corrupção todo dia. E depois comete uma fraude que pode chegar a R$ 40 bi”, disse o petista em entrevista para a RedeTV. “Vai acontecer o que aconteceu com o Eike Batista. As pessoas vendem uma ideia que elas não são, na verdade”, prosseguiu.
A fraude contábil é investigada pela CPI da Americanas instalada na Câmara dos Deputados e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Até o momento, Sérgio Rial, que identificou o rombo e o tornou público após ficar nove dias como CEO da Americanas, é o único formalmente investigado pela CVM. Na CPI, o atual CEO, Leonardo Coelho, afirmou não haver provas contra Lemann. “Jamais tivemos conhecimento e nunca admitiríamos quaisquer manobras ou dissimulações contábeis”, diz nota do bilionário divulgada em janeiro.
Reuniões no MEC
Desde as críticas de Lula a Jorge Paulo Lemann, a MegaEdu só aumentou seu espaço na máquina do governo federal. Em janeiro, a ONG foi recebida no MEC. Nos meses seguintes, antes de fechar o acordo com o ministério, MegaEdu se reuniu outras três vezes com representantes da Secretaria de Educação Básica, segundo registros de entradas e saídas da pasta. As planilhas do ministério não especificam o tema das reuniões.
Em maio, a MegaEdu alcançou um assento no disputado conselho gestor do Fust. Cabe ao grupo “estabelecer os critérios de seleção de propostas” que receberão recursos operacionalizados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). E no mês passado assinou um “acordo de cooperação” com o Ministério da Educação, de Camilo Santana, para “a qualificação de políticas públicas de conectividade de escolas públicas”.
O MEC se valeu de uma exceção das regras para fechar o acordo com a MegaEdu. A legislação exige que entidades tenham ao menos três anos de existência e um ano de comprovada capacidade técnica para contratos de colaboração, a menos que não haja previsão de pagamentos. É o caso da parceria com a ONG ligada a Lemann, feita de graça e válida por três anos.
A MegaEdu passou a ocupar espaços nobres do debate público sobre conectividade antes mesmo de ter um CNPJ. Em março do ano passado, participou de uma reunião do Gape. Na reunião, o representante da ONG apresentou a associação como uma entidade “em processo de criação”.
Antes de atuar na esfera pública, a MegaEdu fez um estudo sobre conectividade no País e foi parceira de um projeto que levou internet por satélite da Starlink, do bilionário Elon Musk, para escolas do Pará e do Amazonas. A associação chegou a elogiar publicamente as antenas de Musk após a visita do empresário sul-africano ao Brasil, no ano passado. “Outra boa-nova que vem com a Starlink é a solução para a internet em 12 mil escolas afastadas onde a conexão poderia demorar muito tempo para chegar”, afirmou a ONG em maio de 2022.
‘Acordo segue rigorosamente as normas e ONG tem foco social’
O Ministério da Educação afirmou que todos os acordos de cooperação técnica estabelecidos pela pasta “seguem rigorosamente as normas”. Segundo o MEC, a Secretaria de Educação Básica (SEB) analisou a conveniência e oportunidade e fechou o contrato. “A Consultoria Jurídica do MEC analisou e atestou a inexistência de óbice jurídico à celebração do acordo, que tem a vigência de três anos e prevê a realização de projetos para a solução dos desafios identificados, com metas e prazos estabelecidos”, afirmou a pasta.
“O objeto envolve o apoio da instituição à SEB na consolidação de conhecimento, por meio de estudos e análises técnicas, subsidiando a Secretaria com dados e subsídios para a construção de soluções e estratégias para universalização da conectividade de escolas públicas.”
A MegaEdu disse ao Estadão que a organização não tem fins lucrativos e seu “único foco é o social”. A associação informou que trabalha com base em dados e estudos, “sem interesse comercial”. Dentre suas atividades, relatou, está fazer estudos que amparem a discussão sobre quais critérios e parâmetros de conectividade de escolas permitem o uso pedagógico da internet. “Em relação ao Conselho Gestor do FUST, a MegaEdu foi indicada por 17 organizações, que fazem parte de uma coalizão ampla da sociedade civil, para representá-los em 1 das 3 cadeiras reservadas para a sociedade civil”, registrou.
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