Por Flávio Chaves*
Imagine, por um instante, o mundo invertido. Não mais como fábula, mas como denúncia. Homens e mulheres presos em gaiolas estreitas de ferro, engolindo farelos sob o olhar indiferente de galos e galinhas. Comendo com a boca no chão. Sendo alimentados por aves com bicos afiados e olhos frios. Noutra cena, corpos humanos dispostos em bandejas de isopor, selados em plástico transparente — prontos para serem comprados como carne em um supermercado lotado de aves consumidores.
O que parece absurdo ou surreal é, na verdade, uma alegoria precisa. Uma provocação simbólica que retira do invisível o que sempre esteve diante de nós: o abismo ético que criamos ao tornar a dor do outro irrelevante. O vídeo publicado pela página Poemas Sextantes, no Instagram, não é sobre vegetarianismo, veganismo, ou dieta. É sobre a nossa falência moral diante da vida que não nos pertence.
A cena ecoa o mito da caverna de Platão. Homens acorrentados desde a infância, vendo sombras e acreditando que aquilo é o mundo real. Vivemos da mesma forma: cegos diante daquilo que a indústria da carne, do leite e dos ovos esconde com paredes de propaganda e rótulos de supermercado. Não vemos os currais. Não vemos os gritos. Não vemos a dor. E, assim, aceitamos a barbárie como rotina.
Leia maisAlbert Schweitzer alertou: “Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, ninguém precisará ensiná-lo a amar seus semelhantes.” Mas essa lição, apesar de milenar, parece ainda não ter encontrado eco em nossa espécie. O que fizemos foi justamente o oposto: aprendemos a desprezar o pequeno para validar o domínio sobre o outro — mesmo que o outro chore, fuja, sangre e tema a morte como nós.
O artigo que você lê não é um panfleto de militância alimentar. É um grito ético contra a transformação da vida em objeto. No último domingo, o programa Globo Rural mostrou porcas aprisionadas em celas tão pequenas que sequer podiam virar o corpo. Vivem inteiras deitadas. São inseminadas, dão à luz, alimentam filhotes e depois morrem — sem jamais conhecer o que é caminhar. O espaço da vida reduzido a uma cela de sofrimento.
Essas imagens, mesmo reais, não nos comoveriam se não fossem sobre humanos. Por isso o vídeo choca. Porque só quando o nosso corpo é posto no lugar do outro, conseguimos, por instantes, imaginar o horror. Mas se é preciso ver o homem na gaiola para sentir compaixão, o que isso diz sobre nós?
George Orwell já havia nos avisado em A Revolução dos Bichos (1945): quando se normaliza a opressão, a linha entre vítima e algoz se apaga. E a revolução que começa em nome da liberdade, termina — quase sempre — em novos grilhões. A diferença é que, agora, somos nós os dominadores, a espécie que achou que o planeta era seu e que tudo o que respira pode ser embalado, cortado e vendido.
Mas a Terra responde. Seja com pandemias, seja com colapsos ambientais, seja com incêndios ou ondas de calor. Quando uma espécie se recusa a se autorregular, o planeta cria mecanismos para restaurar o equilíbrio: vírus, catástrofes, escassez. É a reação do sistema vivo contra a arrogância do “rei” que nunca soube governar.
Este artigo é um apelo. Um espelho invertido. Um chamado para despertar da caverna, sair do transe. Olhar o outro — qualquer outro — como portador de direito à existência. A consciência não é um privilégio humano. A sensibilidade também não. A dor, menos ainda.
Que essa reflexão ultrapasse a dieta, os rótulos, os dogmas. Que vá além da culpa e da doutrina. Que nos convoque àquilo que, no fundo, nunca deveria ter se perdido: a dignidade da vida. Em qualquer corpo. Com ou sem asas.
*Jornalista, poeta e escritor
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