Um dos eventos mais emblemáticos do Sertão pernambucano, a Missa do Vaqueiro de Serrita, está no centro de uma polêmica que mobiliza moradores, representantes da cultura local e profissionais do turismo. A tradicional celebração religiosa, que acontece anualmente na quarta semana de julho, corre o risco de ter sua data modificada por decisão do prefeito Aleudo Benedito (MDB), que aprovou um projeto de lei que prevê uma celebração à parte intitulada “Festa do Jacó”.
A medida foi aprovada em uma sessão extraordinária na Câmara de Vereadores, logo após uma audiência pública. Segundo denúncias, a população não foi informada com antecedência suficiente sobre a audiência, e o debate contou apenas com a presença de representantes da Empetur, Fundarpe, do secretário de Cultura do município, vereadores e alguns curiosos. Nenhuma consulta pública, de fato, foi feita com a comunidade. O novo projeto do prefeito transforma o tradicional evento sertanejo em duas festas distintas, com datas diferentes. A 55ª Missa do Vaqueiro está marcada para o quarto domingo de julho, dia 27, e conta com o Padre Antônio Maria.
O anúncio da mudança foi feito por meio de um vídeo divulgado nas redes sociais, no qual Aleudo ignora os trâmites legais e o parecer do Ministério Público — o promotor de Justiça, Leon Klinsman Farias Ferreira, havia recomendado ao gestor que se abstivesse de sancionar o projeto, pois a proposta “caracteriza substituição simbólica indevida da manifestação cultural original, desrespeitando o patrimônio cultural protegido e ultrapassando a competência legislativa do Município, conforme disposto no artigo 24, inciso VII, e no artigo 215 da Constituição Federal”.
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A população reagiu com indignação. “Não queremos que mudem a história de Serrita. A tradição é a Missa do Vaqueiro e ela deve permanecer como sempre foi, no quarto domingo de julho”, afirma Fátima Canejo, comunicadora e defensora da preservação do patrimônio público e da cultura de Serrita.
Uma tradição construída com fé e cultura
Criada em 1970 por Padre João Câncio, o cantor Luiz Gonzaga e o poeta Pedro Bandeira, a Missa do Vaqueiro nasceu como uma homenagem aos vaqueiros do Sertão. Com o passar dos anos, se transformou em um dos maiores eventos de religiosidade e cultura popular do Nordeste. Após a morte de seus criadores, a celebração foi assumida pela Empetur e, posteriormente, por Helena Câncio, filha do padre João, que propôs a transferência da festa para o quarto domingo de julho. O objetivo era evitar conflitos com outros eventos regionais e potencializar o fluxo de turistas.
A mudança, que já acontece há anos, nunca havia sido oficializada no calendário estadual, o que causou lacunas legais e permitiu manobras como a atual. Em 2009, o deputado Maviael Cavalcanti criou uma lei reconhecendo a Missa do Vaqueiro como Patrimônio Imaterial de Pernambuco. A sanção foi feita pelo então governador Eduardo Campos. Durante a gestão de Paulo Câmara, um termo de cessão entre o Governo do Estado e a população de Serrita garantiu a preservação do parque onde ocorre a celebração.
Até o momento, a governadora Raquel Lyra (PSDB) não se pronunciou sobre o caso. A população escreveu uma carta à governadora. Veja na íntegra:
Excelentíssima Senhora Governadora Raquel Lyra,
Nós, representantes da cultura sertaneja, vaqueiros, fiéis, organizadores, artistas, agentes de turismo e cidadãos de Serrita e de todo o sertão nordestino, viemos por meio desta carta expressar nossa profunda preocupação e indignação com a recente decisão da Prefeitura Municipal de Serrita de alterar a data da tradicional Missa do Vaqueiro, antecipando-a para o terceiro domingo de julho.
A Missa do Vaqueiro é mais que um evento. Ela é patrimônio cultural e imaterial de Pernambuco, reconhecida pela Lei Estadual nº 13.636/2009, fruto do esforço de figuras históricas como Padre João Câncio, Luiz Gonzaga e Pedro Bandeira, que sonharam e construíram, com o povo sertanejo, uma celebração que honra a fé, a memória e a identidade do homem do campo.
É verdade que a missa teve origem no terceiro domingo de julho. No entanto, há décadas ela é realizada no quarto domingo do mês, por necessidade prática e consenso popular, pois o antigo período coincidia com outras festividades regionais, o que causava esvaziamento de público e prejuízo à economia local. A mudança, consolidada com o tempo, permitiu o crescimento da festa e transformou-a em um marco do calendário nordestino.
A recente decisão de dividir o evento em dois — criando a chamada “Festa de Jacó” e separando o momento religioso do profano — foi aprovada em projeto de lei por vereadores aliados da gestão atual, sem a devida escuta da população, das instituições culturais ou da Igreja. Com isso, estamos diante de dois eventos, duas datas, dois discursos — e um povo dividido.
Essa mudança já está causando prejuízos reais: cancelamento de viagens e pacotes turísticos, sobreposição com festas tradicionais de cidades vizinhas, queda na expectativa de público, desorganização para os artistas, vaqueiros e comerciantes que sempre se programaram com base na data tradicional. É um erro repetir um modelo que já havia sido superado pelo bom senso e pela prática popular.
Por isso, pedimos sua atenção, seu olhar sensível e seu posicionamento diante desse impasse. Como governadora de um estado rico em cultura e tradição, e como chefe do Executivo que reconheceu esta missa como patrimônio estadual, sua palavra é fundamental para proteger a integridade histórica da Missa do Vaqueiro de Serrita.
Solicitamos que o Governo do Estado:
– Reconheça publicamente a data tradicional da Missa do Vaqueiro como o quarto domingo de julho;
– Atue como mediador entre as partes envolvidas para garantir que as decisões futuras respeitem a escuta popular, a tradição e o legado cultural da celebração;
– Apoie institucionalmente a preservação da missa enquanto símbolo da fé e da identidade do povo sertanejo, tal como sempre foi vivida e mantida pelo povo.
Governadora, o sertão clama por respeito à sua história. A cultura popular não pode ser moldada por conveniências políticas momentâneas. A Missa do Vaqueiro é de todos — e é com todos que deve ser cuidada.
Atenciosamente,
Fátima Canejo
Serrita – PE, abril de 2025
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